Professores: uma paródia para lamentar

No dia 16 de Abril assistiremos a mais um episódio de uma longa encenação que quase ninguém quer ver terminada. Que isso aconteça no Parlamento é algo para lamentar.

No próximo dia 16 de Abril, a agenda da sessão plenária do Parlamento contempla no seu ponto 5 o “Projeto de Lei n.º 944/XIII/3.ª (Cidadãos)” sobre a “Consideração integral do tempo de serviço docente prestado durante as suspensões de contagem anteriores a 2018, para efeitos de progressão e valorização remuneratória”, projecto que resulta de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) desenvolvida desde 17 de Abril de 2018.

Embora formalmente não seja o último passo de um processo com cerca de um ano (em caso de aprovação na generalidade será “remetida à comissão competente em razão da matéria para efeitos de apreciação e votação na especialidade”, de acordo como o n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.​º 17/2003, de 4 de junho, com as alterações introduzidas posteriormente e que me escuso a especificar), como elemento da sua Comissão Representativa acalento escassas esperanças que seja aprovada e que não termine aqui uma experiência que não deixa de ser enriquecedora quanto aos mecanismos formais que a nossa democracia reserva para a participação cívica da chamada “sociedade civil".

Compreendo que uma iniciativa legislativa para votação na “Casa da Democracia” deve ter procedimentos rigorosos, mas uma narrativa detalhada das peripécias ocorridas durante o último ano conteria quase todos os ingredientes de uma paródia triste, desde uma plataforma electrónica a ir-se abaixo com uma frequência assustadora, passando por um processo de verificação de assinaturas sem critérios claros e uma mudança de regras perto do final, devido a alterações legislativas, até uma audição na Comissão de Educação e Ciência do Parlamento em que o deputado nomeado para produzir o parecer sobre a iniciativa (e conhecido opositor ao que nela é proposto) teve direito ao dobro do tempo regulamentar ao falar em nome do seu partido e como relator.

Ultrapassando essas fases, com alguma acrimónia pelo caminho e muita insistência junto dos serviços do Parlamento em alguns momentos mais críticos, o parecer sobre o que já se tinha tornado projecto de lei (publicado na separata n.º 105/XIII/4, a 15 de Janeiro de 2019) foi aprovado no dia 15 de Fevereiro de 2019 na sessão 267 da Comissão acima referida e foi enviado para o presidente da Assembleia da República no dia 19 de Fevereiro, conforme se pode verificar no site do Parlamento. “Recebido o parecer da comissão” de acordo com o artigo 10.º da legislação aplicável, “o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade.” A 10.ª sessão plenária depois de dia 19 de Fevereiro aconteceu no dia 21 de Março de 2019. Aceitando que o parecer demorou uns dias a atravessar os corredores de São Bento, teríamos ainda a possibilidade de a sua votação acontecer nas sessões de 27 ou 29 de Março.

Mas não foi isso que aconteceu e só alguém com um assinalável défice de atenção quanto à oposição manifestada por alguns líderes sindicais em relação à ILC e ao calendário das inúteis negociações entre a Plataforma Sindical e o Ministério da Educação, decorrentes de um veto presidencial inócuo e meramente formal, poderá achar coincidência que a discussão do projecto nascido da ILC tenha calhado no mesmo dia em que foram agendados os apressados pedidos de apreciação parlamentar n.º 126 (Bloco), 127 (PCP) e 129 (PSD) do decreto-lei n.º 36/2019, de 15 de março, incluindo os de partidos que tinham publicamente afirmado que o assunto já estava legislado na lei do Orçamento do Estado para 2019 e que o resto deveria ser apenas objecto de negociações com os sindicatos, pelo que a ILC era algo inútil ou redundante.

Um aspecto adicional desta questão relaciona-se com o descuido e complacência com que o debate em torno da recuperação de tempo de serviço dos docentes tem sido feito quanto ao seu peso para as finanças públicas. O Governo lançou um número para a opinião pública (600 ou 635 milhões de euros) e praticamente ninguém se incomodou em contestá-lo com rigor. Os próprios sindicatos e partidos que afirmam discordar dessas contas não apresentaram cálculos alternativos detalhados, mesmo quando lançaram números divergentes. No caso dos deputados, é estranho que ninguém se tenha preocupado em pedir ao Governo que apresentasse como fez as suas contas, detalhando os encargos em termos líquidos e não apenas o acréscimo ilíquido, que inclui valores que ficam retidos imediatamente nos cofres do Estado.

Para suprir esta falha, que está longe de ser um pormenor, um grupo de professores reuniu-se e procurou fazer esses cálculos, apenas com os dados que são de conhecimento público. Uma versão preliminar foi entregue na Comissão de Educação, quando da sua audição da Comissão Representativa da ILC no dia 16 de Janeiro de 2019; de acordo com essa versão, o valor ilíquido da recuperação integral dos 9 anos, 4 meses e 2 dias (a contar a 1 de Janeiro de 2018) era pouco superior a 480 milhões de euros e o seu valor líquido era inferior a 250 milhões.

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Tentativas feitas ao longo de vários meses para verificar estes dados de forma independente por empresas de auditoria ou por investigadores universitários da área da Economia da Educação foram falhando, com as mais diversas justificações, algumas delas absolutamente ridículas (incapacidade técnica), outras mais sinceras (tema demasiado polémico), mas por vezes com explicações informais, confirmando que a metodologia usada é correcta e que os valores calculados terão um desvio mínimo em relação ao valor real. Perante isso e porque já entrámos em 2019, foram reelaborados os cálculos para conter as situações de progressão entretanto ocorridas, tendo os valores sido reavaliados para cerca de 506 (ilíquidos) e 262 (líquidos) milhões de euros. Até ao momento, mais ninguém o fez. Embora o argumento central para a recusa da recuperação integral do tempo de serviço docente seja precisamente o seu peso “insustentável” para as finanças públicas, mesmo quem defende essa recuperação parece assumir o valor apresentado pelo Ministério das Finanças como válido.

Voltando ao início, no dia 16 de Abril assistiremos a mais um episódio de uma longa encenação que quase ninguém quer ver terminada, parecendo existir uma lamentável convergência de vontades em mistificar a opinião pública, em dificultar qualquer exercício de uma cidadania independente e em não desvendar os meandros ocultos das contas do Ministério das Finanças. Que isso aconteça no Parlamento é algo para lamentar.

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