Damasceno: a tipografia do fim do mundo chegou aos 50 anos

Escondida no centro de Coimbra, a casa de Rui Damasceno resistiu e à vulgarização das impressoras. Hoje, vive sobretudo de livros e da vontade de divulgar a tipografia.

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Adriano Miranda
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Quando João Damasceno bateu com a porta da Tipografia Progresso, no Pátio da Inquisição, em Coimbra, e subiu a rua de Montarroio para se estabelecer no número 45, o filho, Rui, tinha 12 anos. 

A Tipografia Damasceno, conta Rui, que aos 62 anos vai mantendo a casa, nasceu com material adquirido em Lorvão, Penacova, de onde veio também o alvará, então difícil de obter. Hoje, à entrada do espaço estão ainda o prelo, a máquina de braços e pedaleira comprados há 50 anos e que introduzem o que veio depois. 

Na oficina de tipografia, o trabalho era dividido por dois. “A minha mãe [Odete Paixão] teve tanta importância como o meu pai”, lembra Rui Damasceno.

“Ela é que praticamente compunha. O meu pai também o fazia, mas estava mais ligado a outro tipo de coisas, [como] orçamentos e contactar clientes”. Depois havia os filhos. “Eu e o meu irmão éramos putos na altura e demos uma ajuda”, lembra.

Tendo começado a trabalhar ali nas férias e quando era preciso, acabou por ficar com a empresa familiar à medida que o pai e a mãe se foram afastando. Um negócio que sofreu um grande abalo com a propagação das impressoras, a partir de meados de 1990, identifica. Começaram a estar em todas as escolas, repartições públicas ou escritórios. Os emails também não ajudaram. Hoje, “envelopes, poucos; cartas, nenhumas; modelos, toda a gente os tira numa impressora”, refere. Desse capítulo, os envelopes ainda vão tendo alguma saída, “mas isso também, qualquer dia, kaputt”.

Para além de envelopes e similares, refere, o negócio vai-se mantendo com edições de livros de pequena tiragem, na ordem dos 100 ou 200 exemplares.
“Depois apareceram aqui estas meninas”, introduz. Refere-se à ilustradora Ana Biscaia e à designer Joana Monteiro, que identifica como “as responsáveis” por se virar para outro tipo de trabalho, não tanto comercial, mas mais artístico. 

Depois de vir de Londres, onde estudou e onde teve contacto com tipografias, Joana Monteiro quis continuar a prática. Daí a ligação à Damasceno, depois de apresentada por intermédio do designer e professor na Universidade de Coimbra, João Bicker. Foi então que começaram a chegar as solicitações dos estudantes universitários, para que houvesse ali oficinas.

Guardar a memória

Joana Monteiro e Carina Correia (coordenação e revisão) quiseram assinalar em livro — publicado pela Editora dos Tipos — o aniversário, para que a memória dos trabalhos que dali saíram não se perca. Subiram a um escadote para aceder à prateleira perto do tecto onde Damasceno guarda parte da produção e bateram a outras portas para encontrar peças que faltavam. O resultado é uma edição que se desdobra entre a parte textual, com entrevistas e registos de amigos da tipografia e uma selecção do que foi produzido naquela casa ao longo das décadas. 

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Estão lá cartazes de bailes, peças de teatro e cadernos diários. Mas também as primeiras edições da Fenda. Uma delas, O Z de Leibniz, é assinada por Vasco Sérlei, pseudónimo de Vasco Santos, o editor. Tal como como encontrou outro nome para assinar, deu também um novo nome à casa de Damasceno, onde o primeiro número da Fenda / Revista de Luxúria passou pelo prelo. Os 250 exemplares foram impressos na Tipografia do Outro Mundo, menciona o editor nos créditos. Nas selecções estão também alguns trabalhos de João Bicker para a Fenda (que recentemente reencontrou Vasco Santos na VS.).

Há também panfletos, manifestos e comunicados sindicais, registo de lutas laborais. Isto embora não tenha sido ali produzida muita propaganda anti-regime. Quando se mudou para a rua de Montarroio, João Damasceno já era conhecido das autoridades. Membro do Partido Comunista Português, já havia sido preso, nos tempos da Progresso. 

Rui Damasceno não consegue precisar bem, mas terá sido entre 1970 e 1971, o episódio em que a PIDE faz uma rusga à tipografia em busca dos folhetos para o 8 de Março, dia da mulher. Estavam ali, a um canto, “mas eles eram burros que nem uns seixos” e não encontraram o material. Como consequência, o pai queimou os prospectos para que não fossem descobertos. No auto-de-fé, refere, o tipógrafo destruiu também a colecção completa das ilustrações policopiadas distribuídas pelos estudantes durante a crise académica de 1969. 

Pelo material do livro, percebe-se também a relação que a casa tem mantido com os agentes culturais da região. Do Citemor ao Teatro Académico Gil Vicente, passando pelo Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, ou por clubes de cinema e salas de espectáculos já extintas, como o Sousa Bastos ou o Avenida. 

Ana Biscaia sublinha a importância de manter o 45 da rua Montarroio aberto. “Esta casa tem uma série de características que permitem, de facto, pensar numa ideia de museu”, refere. Mas com material e objectos que funcionam ainda, onde as pessoas possam descobrir como funcionava a tipografia e os estudantes de design possam experimentar. “Acho que se devia tirar partido disso”, afirma.

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