Famílias e Schopenhauer 38

Temos ouvido barbaridades imensas. A preguiça mental assomou às meninges de ilustres ocupantes da escrita, do som e da imagem.

O combate político em torno das nomeações para o Governo, para os gabinetes e para os serviços públicos de familiares tem-se mantido vivo nas últimas semanas. Confessamos a nossa total surpresa, porque o assunto deveria aconselhar prudência a todos quantos exercem ou exerceram a atividade política nos últimos 40 anos.

Olhamos a realidade de hoje e ficamos descontentes com o que nos é apresentado. Não se trata da realidade concreta, não se comporta um critério de análise que seja inteligível, o que está acontecendo é um processo onde se emparceiram factos e invenções, certezas e ilações.

Há três universos nesta discussão pública. O primeiro é o que diz respeito aos familiares que, a convite do chefe do Governo, integram o executivo ou que exercem funções no mesmo órgão eleito, como é o caso dos deputados; o segundo, o que se liga às nomeações para gabinetes ministeriais de familiares de membros do Governo; o terceiro é o que insere histórias de vida do passado nas ficções do agora.

É inconstitucional e seria inaceitável que alguém tentasse impedir, por lei ou por autoridade de qualquer natureza, um qualquer primeiro-ministro de escolher quem quer que seja para o seu Governo. Importa deixar bem claro que se António Costa entender continuar a ter no seu Governo personalidades que, sendo familiares, são escolhidas pela sua competência técnica ou política, não deve, não pode, o Presidente da República limitar as suas escolhas.

Não é ilegal nem eticamente reprovável a nomeação de personalidades para gabinetes ministeriais ou serviços do Estado se essas escolhas resultarem de uma escolha de confiança pessoal, nos primeiros, e de adequação à função e competência reconhecida no segundo universo. Em democracia ninguém pode ser beneficiado ou prejudicado pela sua circunstância.

O terceiro grupo, nascido para dar a sensação de que estamos perante um “monstro socialista”, é aquele onde se inserem os escolhidos que já tiveram um familiar na atividade política em décadas passadas e que, por decisão dos deuses, deveriam quedar-se eunucos e incapazes para todo o serviço.

Temos ouvido barbaridades imensas. A preguiça mental assomou às meninges de ilustres ocupantes da escrita, do som e da imagem. E em muitas dessas considerações é referido o atual regime de transparência francês.

Não será difícil a qualquer internauta, que leia e entenda a língua francesa ou que saiba utilizar o tradutor do Google, pesquisar “les lois du 15 de septembre 2017”. Trata-se de um repositório denso de novas obrigações a verificar pelos agentes políticos franceses e que resultou da eleição de Macron.

A pergunta é simples: com o regime legal francês, em vigor, os casos verdadeiros conhecidos em Portugal nos últimos tempos estariam eliminados, as nomeações conhecidas estariam impedidas? Para esta resposta encontraremos a simplicidade de um NÃO. Só dois dos muitos casos conhecidos seriam implicados, seriam travados pela lei francesa.

O Presidente da República francesa não está impedido de convidar familiares para o governo; os membros do governo só estão “impedidos de nomear familiares diretos para os seus gabinetes ou para os serviços que tutelam” e não é condição política eliminatória o facto de se ser familiar de um antigo político para o exercício de qualquer atividade no universo do Governo. São falsos todos os argumentos de quem emprenha pelo ouvido.

Nos últimos tempos, o Presidente da República indiciou uma posição que levaria a um pequeno incremento do Código do Processo Administrativo e que poderia resolver o problema. As alterações preconizadas pelo PR só abrangeriam, no final, dois casos dos muitos que encheram páginas.

Mais recentemente, o PR foi mais longe e advogou uma concretização legislativa mais robusta, não se sabendo qual é a profundidade que, na sua leitura, poderá sair dos acordos parlamentares indispensáveis. Legislar a quente não é um bom caminho, porque nenhuma nova lei irá impedir que a questão do “familismo” regresse antes das eleições legislativas. Este será o mono-tema que a insurreta política irá exaustar.

Schopenhauer, nas suas 38 estratégias para vencer qualquer debate, faz uma longa apreciação de como se deve seguir num qualquer argumentário. Parece que os políticos menos habituados à luta não tiveram, até hoje, uns minutos para aprenderem as condições essenciais para uma vitória no combate das ideias, para evidenciarem as ferramentas mínimas exigidas a uma peleja eleitoral.

Rangel e Melo, velhas raposas da tática, agentes que não se refutam no disfarce, que conhecem as formas de desqualificar o argumento do outro, que não negam a dupla interpretação dos factos, que sabem reduzir a força do fundamento principal exposto pelo adversário, que invalidam a teoria pela prática, elas, as velhas raposas, estão em campo aberto e, por agora, têm-se dado bem.

Mas, não contentes com o caminho, foram até ao último item da estratégia e observam, ainda a procissão vai no adro, a regra: ataque pessoal. O “familismo”, mesmo escondendo o que se apresenta nodoso nas saias de ambos, parece ser o tal ponto 38 de Schopenhauer.

Como deve o Partido Socialista reagir a esta caminhada? Com as regras sábias de Nuno Álvares Pereira – surpreendendo e atacando com velhas técnicas que os mais experientes políticos intuem, mas nunca verbalizam.

Nesta campanha parece valer tudo. Pois bem, se o Partido Socialista quer ser um rapaz bem-comportado, sentado na beira do recreio e sujeito a bullying, não terá vida fácil. Se se quer fazer robusto na Europa e avassalador nas legislativas então deve sair à rua e perder a vergonha e o medo de usar todos os nomes.

Este é um desafio. Não estamos em tempo de amadorismos. Façamos dos próximos combates um tempo de gente grande e corajosa.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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