O coração negro da nossa galáxia

A negação da ciência é uma arma política da extrema direita, apostada em impor os seus dogmas e a sua nefasta ideologia.

A descoberta foi extraordinária e correu o mundo. A foto de um anel de luz mostrava onde se escondia o buraco negro. Pela primeira vez, conseguiu-se colocar em imagem o que há cerca de 100 anos foi previsto por Albert Einstein.

A fotografia é a capacidade de captar a luz de um momento e deixar esse registo para a história. Coisa difícil quando nem a luz resiste à sedução de um buraco negro. Por isso mesmo, a fotografia não é do buraco negro mas da sua moldura dourada. Neste caso, o círculo marca o lugar.

A prova serve para confirmar a Teoria da Relatividade Geral avançada por Einstein. Já tinha sido possível ouvir “ouvir” buracos negros com a detecção das ondas gravitacionais e dar mais passos para essa confirmação teórica, mas era fundamental confirmar a geometria deste corpo celeste, o que só foi possível agora.

Como isto se relaciona com a nossa forma de ver o mundo? A resposta mais simples é dada por Carl Sagan, o astrónomo que escreveu o maravilhoso Cosmos, quando afirmou que “antes de Einstein defendia-se que existiam sistemas de referência privilegiados e coisas tais como o espaço absoluto e o tempo absoluto. O ponto de partida de Einstein foi que, qualquer que fossem os sistemas de referência, todos os observadores (fosse qual fosse a sua localização, velocidade ou aceleração) veriam as leis fundamentais da natureza da mesma forma”. Uma conclusão que confirma a teoria da unidade da matéria. No já velhinho debate entre materialismo e idealismo, é mais um momento histórico que comprova que apenas o materialismo tem validade.

Mas, os acasos históricos estão cheios de significado e ironia. O mesmo mundo que festeja o enorme avanço científico está confrontado com uma brutal negação da ciência à escala global. Nos EUA, o presidente Trump nega as alterações climáticas e coloca-se acima da realidade e do conhecimento científico. Tenho um “instinto natural para a ciência”, disse Trump para demonstrar como a sua opinião se sobrepõe às provas dos cientistas. O seu vice-presidente, Mike Pence, rejeita a Teoria da Evolução de Charles Darwin, abraçando o criacionismo e favorecendo a sua introdução nos sistemas oficiais de ensino. São estes alguns dos inimigos da ciência.

Contudo, a relação difícil de governantes com a ciência não é apenas do domínio estadunidense. Ironia ainda maior foi a apresentação do novo ministro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub, no mesmo dia em que se deu a conhecer a fotografia do buraco negro. Apresentado como discípulo zeloso de Olavo de Carvalho, o guru do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, tem nesse cartão de visita uma profunda marca ideológica e uma negação da ciência. Pedra de toque do pensamento de Olavo de Carvalho é a seguinte afirmação: “Então um cidadão chamado Albert Einstein (...) achou que era preferível modificar a física inteira só para não admitir que não havia provas do heliocentrismo”. Sim, o heliocentrismo que Olavo de Carvalho quer colocar em causa é a afirmação de que a Terra gira em torno do sol.

A negação da ciência é uma arma política da extrema direita, apostada em impor os seus dogmas e a sua nefasta ideologia. Os exemplos acumulam-se e devem merecer toda a nossa atenção. O populismo parte do desconhecimento e do preconceito para fazer o seu caminho, negar a realidade é só um segmento desse trajeto. As fake news são, por isso, uma decorrência natural de quem não tem pejo ou pudor em distorcer factos e inventar mentiras. Se lhes é tão natural negar a ciência, porque seria anormal deturpar a verdade a seu bel prazer? Contra a ciência e contra a realidade: eis o retrato da extrema direita.

A primeira imagem de um buraco negro mostra como a realidade se impõe, avassaladora, independente da vontade humana. A nossa galáxia desvendou toda a beleza do seu coração negro e permitiu alcançarmos mais uma preciosa lição: podem tentar negar a ciência, et pur si muove.

O autor escreve segundo novo Acordo Ortográfico

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