Marisa Matias: “O que vejo é uma União Europeia minada pela corrupção”

Marisa Matias, novamente a cabeça de lista do BE às eleições europeias, mostra-se preocupada não só com um “tipo de influências que não será feito às claras” nas instituições europeias, mas também com governos europeus atingidos pela corrupção.

Para a eurodeputada Marisa Matias, “tem de haver um aumento significativo do orçamento europeu” que “tem de ter um carácter redistributivo”. Para que tal aconteça, há uma área que pode representar um caminho a seguir, havendo “vontade política” para tal – trata-se do combate à fraude, evasão e elisão fiscais, práticas que representam perdas de dinheiro com impacto nos orçamentos. Pode ouvir a entrevista, na íntegra, na Rádio Renascença, esta quinta-feira, às 13h.

Tem dito que vê Portugal a partir de Bruxelas, não só de Lisboa. Que Portugal vê?
Agora um bocadinho melhor. Mas já vi um Portugal a ser muito massacrado a partir de Bruxelas, com a intervenção da troika. E a ser pouco respeitado nas suas opções democráticas, quando chegámos a esta solução governativa. Não foi propriamente uma reacção, face a Portugal, muito positiva. Tivemos a Comissão Europeia a procurar impedir o aumento do salário mínimo e, depois, a reconhecer que tinha sido uma boa medida. Foram os resultados que levaram a esse reconhecimento, embora isto seja sempre muito contextual e muito contingente.

Pode estar sempre em perigo?
Está sempre tudo em causa. Devemos partir desse princípio. Tudo tem de ser muito negociado, renegociado, enfrentado. Não foi só o salário mínimo. Houve um caminho um bocadinho doloroso de enfrentamento das instituições europeias. A solução não é perfeita, teve bons resultados, mas foi limitada. O que as pessoas sentiram como resultados mais positivos nas suas vidas foram aqueles em que foi preciso enfrentar mais directamente o que era a indicação prévia de Bruxelas.

E que Europa vê?
O que vejo neste momento é uma União Europeia minada pela corrupção e com uma ascensão da extrema-direita enorme.

Pela corrupção nas instituições europeias, nos Governos?
Certamente haverá corrupção nas instituições europeias e só saberemos verdadeiramente a dimensão dessa corrupção quando as propostas para a transparência forem aprovadas. Há um lobby muito poderoso. Um lobby em teoria é inscrito, sabe-se quem reúne com quem, mas obviamente não creio que seja tudo às claras. Haverá um tipo de influências que não será feito às claras.

Consegue identificar essas influências?
Claramente.

Medidas que tenham resultado dessas influências?
A não regulação do sector financeiro, depois da crise, que continua numa condição muito privilegiada. Bruxelas praticamente não fez nada, as instituições fizeram muito pouco para regulá-lo. Aprendeu-se muito pouco. Porque tem um poder de lobbying enorme. Quando falava dessa corrupção que acredito que exista, apesar de haver um registo público do lobbying, estava a falar também a nível dos Governos. O que se passa em Malta, na Bulgária, que levou ao assassinato de jornalistas por investigarem esquemas de corrupção que existiam nos Governos, ou o que se passa na Eslováquia, na Roménia. A Roménia é um caso claríssimo de um Estado a colapsar, inundado em corrupção. E o que se passa com a ascensão da extrema-direita, seja na Áustria, na Hungria, na Polónia?

O BE condena o que se passa na Hungria, mas também na Roménia e em Malta?
Claramente. Não entendo que há corrupção boa e má, dependendo de qual é o espectro ideológico em que se insere o Governo. Não há regimes totalitários bons ou maus, sejam de direita ou de esquerda. O que tem de prevalecer são os valores democráticos e o Estado de direito. Na União Europeia temos já dez Governos de extrema-direita ou em coligação com a extrema-direita. Já havia pouco de união, a crise económica teve um impacto muito forte em desestruturar e em agravar as dimensões que impedem mais união. Do ponto de vista económico, a União Europeia converteu-se numa espécie de ninho de paraísos fiscais, e não o assume. O dinheiro que faz falta às contas públicas, em muitos países, é porque foge para o Luxemburgo, Holanda ou para outros paraísos fiscais dentro da União Europeia.

No manifesto das europeias, o BE põe em cima da mesa a hipótese de “desvinculação da União Monetária” perante “um ultimato das instituições europeias”. Não é uma possibilidade demasiado radical? O que poderia justificá-la?
O BE nunca defendeu programaticamente a saída do euro. Defende que, se tivermos de escolher entre as pessoas e a moeda, escolheremos as pessoas. Ao fim de 20 anos de euro, dificilmente encontraremos alguém que diga que foi um sucesso. E não é preciso falar com pessoas de esquerda. O próprio primeiro-ministro, que dizia que o euro era um sucesso, agora vem dizer que foi uma moeda desenhada para a Alemanha. Trouxe mais divergência do que convergência. Não tem orçamento adequado para permitir redistribuição entre os excedentes e os défices, não permite uma adequação dos objectivos da moeda e a salvaguarda dos serviços públicos ou do Estado Social. Há uma incompatibilidade que resulta da própria arquitectura da moeda. O que vimos na Grécia é insustentável. Não pode justificar-se tudo em nome de uma moeda. A questão é, havendo uma unanimidade relativamente às insuficiências da arquitectura da moeda comum, como é que se consegue fazer com que seja uma moeda comum realmente. Como é que passa a ser uma moeda de toda a gente e não uma moeda da Alemanha, ou ao serviço da Alemanha.

E como é?
Tem de haver um aumento significativo do orçamento europeu e tem de ter um carácter redistributivo. Há uma área que, se houvesse vontade política, permitiria resolver muitos destes problemas – a da fraude, evasão e elisão fiscais. Na União Europeia estima-se que se perca, por ano, o equivalente, mais ou menos, a sete orçamentos comunitários nestas práticas. Não houve medidas concretas, nem sequer perto de decentes, para tentar combatê-las. Aliás, quando se nomeia como presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker, responsável enquanto primeiro-ministro e ministro das Finanças por aceitar esquemas [fiscais] no Luxemburgo, há uma espécie de branqueamento. Quando criámos comissões parlamentares para lidar com as revelações do Lux Leaks, não conseguimos que fossem comissões de inquérito, foram apenas comissões especiais, com muito pouca capacidade de interferir na política concreta. Isso teve a ver com a relação ao presidente da Comissão. Não é fazer mais nada que não seja que as multinacionais e as grandes empresas paguem impostos nos países onde geram lucros. A carga fiscal tende a ser muito pesada em relação aos trabalhadores, aos consumidores, quando, na realidade, se houvesse uma taxa mínima que fosse aplicada a estas empresas, não estaríamos a falar disso. Esse é um mecanismo que está no coração das soluções.

Concorda com uma espécie de imposto europeu? Taxa?
É uma taxa, não é um imposto europeu, nem nunca poderá ser, porque não há nenhuma instituição europeia que tenha competência ou capacidade para cobrar impostos. E ainda bem. O que deve haver é uma cooperação europeia para que se possam identificar estes fenómenos, onde está a falhar a cobrança de impostos nos sítios onde é gerado lucro e, depois, serão as autoridades nacionais que têm a capacidade de colectar esses impostos.

Leia aqui a segunda parte da entrevista.

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