A in(evitabilidade) da pobreza

Se mudarmos de continente e trocarmos a realidade pela ficção, Nadani Labaki, realizadora libanesa, encarrega-se de traçar um retrato cru da pobreza.

Recentemente, o líder do Partido Trabalhista inglês, Jeremy Corbyn repetia, no seu discurso, uma afirmação que tem tanto de simples, como de poderosa: There is nothing inevitable about poverty. E, claro, falava de escolhas...

De acordo com relatório da OIT Perspectivas Sociais do Emprego e do Mundo, divulgado em fevereiro deste ano, apesar da taxa de desemprego, à escala mundial, ter diminuído para 5% (e, ainda assim, atingir 172 milhões de pessoas), esta descida não foi acompanhada pela melhoria da qualidade do emprego criado. Na realidade, segundo a informação ínsita no referido documento, 700 milhões de pessoas, um quarto dos trabalhadores a nível mundial, vive em situação de pobreza. Importa salientar que cerca de dois milhões de trabalhadores são trabalhadores informais, 61% a nível mundial, o que faz com que sejam mais propensos a viver em condições de pobreza e que, e este dado também é alarmante, um em cinco jovens antes dos 25 não estuda, nem trabalha e nem está em formação.

O relatório destaca, assim, sem prejuízo das diferenças regionais, a desigualdade de género no acesso ao emprego, o desemprego e os problemas na qualidade do emprego.

Lançadas as preocupações em torno da tríade das grandes questões que ocupam a agenda do emprego a nível mundial (pobreza, desigualdades e precariedade), a OIT aponta o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 8 (ODS 8) e exorta a comunidade internacional a “promover o crescimento económico sustentável, inclusivo e duradouro, o pleno emprego e o emprego produtivo e o trabalho decente para todos”.

Se nos centrarmos no contexto nacional, segundo dados do barómetro Deco Proteste cerca de 7% da população, ou seja, 300.000 famílias portuguesas, enfrentam a pobreza real, ou seja, “casa, saúde e alimentação asfixiam o orçamento”. Acresce que mais de 3/4 das famílias têm dificuldade em pagar as suas contas. Este estudo avaliou a capacidade de fazer face a seis despesas (habitação, alimentação, saúde, educação, mobilidade e tempos livres). Nos segmentos mais vulneráveis encontramos os desempregados e as famílias monoparentais.

Carlos Farinha Rodrigues, no estudo Desigualdade do Rendimento e Pobreza em Portugal, valoriza a importância da intervenção do Estado e das políticas redistributivas no combate à pobreza e realça a forte penalização dos mais pobres resultante da aplicação do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado, em 2011, entre as autoridades portuguesas, a União Europeia e o FMI. Realce-se que o Memorando da Troika, nas suas duas versões, foi o mote para alterações ao Código do Trabalho que contribuíram para uma forte desregulação da legislação laboral em matérias centrais como o despedimento ou tempo de trabalho e que tiveram como consequência uma enorme desproteção do trabalhador. E foi precisamente a inversão desta lógica que contribuiu para uma redução da pobreza a partir de 2015, segundo os dados do Eurostat.

Alexandre Abreu, em artigo publicado ainda em 2018, vai, no entanto, mais longe, uma vez que considera que se o sistema de apoios sociais se tem revelado relativamente inclusivo e eficaz, pelo que a intervenção estatal tem sido positiva, a economia tem sido bastante “eficaz a excluir”, e refere, a esse respeito, a “enorme vulnerabilidade enquanto sociedade a alterações de política como as que foram impostas pelo Governo anterior”.

Se mudarmos de continente e trocarmos a realidade pela ficção, Nadani Labaki, realizadora libanesa, encarrega-se de traçar um retrato cru da pobreza.

Cafarnaum é um filme doloroso, repleto de planos aéreos sobre uma imensidão de barracos em Beirute. Por muito cínico que seja contemplar a beleza demolidora daquelas favelas, aqueles edificados amontoados e desregulados, onde se misturam emigrantes e refugiados, sabemos que são lugares feitos de um colorido de desgraças. É nessa provocação de beleza, da qual ficamos reféns, nessa contradição que nos interpela, que percebemos que nada nos pode devolver a serenidade. Pelo contrário. A inquietação acompanha-nos, ao longo de cada um dos minutos, assim como a angústia da pobreza extrema, a constatação do abismo que se coloca àqueles que se deparam com a falta de oportunidades. É através daqueles olhos de criança, dos olhos de Zain, adulto à força, olhos que nos desvendam os resultados do sistema capitalista, um sistema cruel, que cria e se alimenta das desigualdades sociais, que vemos o mundo. E por muito que nos pareça histriónico, excessivo, artificial, a sucessão de infortúnios que aquela criança atravessa e que culminam com Zain a pedir para que os pais sejam condenados a não ter mais filhos, é essa amargura, esse retrato pungente da realidade, que nos interpela para a ação. Interpela-nos para as escolhas, escolhas de um outro modelo económico, político e social, escolhas que têm que ser feitas contra a inevitabilidade da pobreza que foi vendida a meninos como Zain.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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