Um Governo que não sabe lidar com os incêndios de 2017

É inaceitável que, em face do trauma dos incêndios, o Governo não seja um livro aberto. Como é que depois de tudo o que passámos com os incêndios de 2017, o Governo ainda se permite “empurrar com a barriga”?

1. “O governo esconde documentos sobre fogos (de 2017) há mais de um ano” – eis as inquietantes notícias, reveladas pelo PÚBLICO no sábado passado num trabalho desenvolvido pela jornalista Liliana Valente. Nesses artigos, mostra-se também que o Governo transmitiu dados errados ao Parlamento. Em ambos os casos, trata-se de matéria séria e grave que não deve nem pode passar em claro. Esta omissão e adulteração de informações é sempre grave em si mesma, sem mais. E merece censura, explicação e reparo. Mas no caso concreto – informação relativa a qualquer uma das tragédias ocasionadas pelos incêndios de 17 de Junho e de 15 de Outubro do ano de 2017 – reveste uma gravidade especial. Com efeito, dada a alta sensibilidade do assunto, a comoção nacional que gerou e o respeito pelas vítimas, o mínimo que se poderia esperar do Governo, nas fases de esclarecimento e de reconstrução, era um comportamento absolutamente irrepreensível e impecável, sem quaisquer falhas ou lacunas.

A incompreensível atitude do Governo afecta, em primeira linha, o Ministério da Administração Interna; mas, dada a factualidade em causa na comunicação de dados errados, atinge também o Primeiro-Ministro. Na verdade, por mais do que uma vez, foi ele quem procurou centrar a responsabilidade pelo fracasso da resposta da protecção civil no sistema de comunicações (chegando mesmo a individualizar a empresa responsável). Mais uma razão, portanto, para dar especial relevância ao padrão de comportamento do Governo.

2. Diante daquelas duas tragédias, era fundamental que o Governo tivesse assegurado um esclarecimento cabal e completo das circunstâncias. Por respeito às vítimas mortais e suas famílias, a todas as outras vítimas, às comunidades locais afectadas e aos cidadãos em geral. Para apurar responsabilidades, lá onde elas existam; mas também para prevenir a ocorrência de outras catástrofes. Só com um conhecimento cuidado do que aconteceu, se está em condições de corrigir práticas e modelos de actuação. Justamente por isso nenhuma informação pode ser sonegada. Se houver alguma razão grada para classificar informação, também é imperativo explicar que razão é essa. Para lá de que não se vislumbra que razão poderia ter, a verdade é que, se houvesse razões, o Governo tê-las-ia invocado.

A táctica de ir arrastando a resposta ou de ir criando aqui ou ali pretextos (do género: “esta informação já foi disponibilizada”) legitima a suspeita de que os elementos não revelados são inconvenientes, desmentem as conclusões oficiais ou infirmam resultados tidos por verdadeiros. É inaceitável que, em face do trauma dos incêndios, o Governo não seja um livro aberto. Como é que depois de tudo o que passámos com os incêndios de 2017, o Governo ainda se permite “empurrar com a barriga”?

3. As vicissitudes em torno dos acontecimentos de Pedrógão e de 15 de Outubro são da ordem do inacreditável. As tragédias atingiram proporções que justificam sérias dúvidas sobre a forma como o Governo tratou da “protecção civil” (desinvestimento e preparação tardia, nomeações de última da hora). Ademais, e como acaba de se ver, subsiste uma enorme resistência a abrir o acesso à informação existente. Como se isto não bastasse, veja-se o caos, a falta de transparência, a incompetência e a suspeita generalizada que incide sobre as operações de recuperação e de reconstrução e até de indemnização de certos tipos de danos.

O caso gritante do desvio de metade das verbas do Fundo de Solidariedade (cerca de 26 milhões de euros), aprovado pela União Europeia, para o pagamento de despesas correntes da Administração Central é eloquente. No campo da recuperação e reconstrução, aquilo que aparece são visitas psicadélicas de Ministros – especialmente dos mais versados no foguetório da propaganda. São, aliás, investigações jornalísticas, umas atrás das outras, que levantam o véu de abusos, falta de transparência, desvios, compadrios e coisas quejandas. Como é possível que, atenta a carga traumática destes eventos, o Governo não tenha feito da reabilitação destas áreas um verdadeiro caso de escola, autenticamente exemplar?

4. Que este Governo fez da protecção civil – e, mais em geral, da segurança de pessoas e bens (vide, segurança rodoviária) – o parente pobre das suas políticas é uma evidência gritante. Evidência ainda ontem confirmada pelas críticas consistentes que os peritos do Observatório Técnico Independente fizeram à nova orgânica da Protecção Civil. Não se compreende, em caso algum, que, depois do que sucedeu, as fases do esclarecimento e da reabilitação fossem manchadas por um comportamento que oscila entre a displicência e a incompetência. Um Governo não pode sonegar informação nem transmitir informação errada. E muito menos a respeito de uma tragédia destas proporções.

5. Em contraste, o PSD, logo em Setembro de 2017 e, pela minha voz, interpelou o Presidente da Comissão para reformar o Mecanismo Europeu de Protecção Civil e, se possível, no limite dos Tratados, criar até uma Força Europeia de Protecção Civil (objecto de um importante estudo de 2006, da autoria de Michel Barnier). A Comissão foi sensível a este primeiro apelo, o PSD envolveu os seus deputados no processo legislativo europeu e, em Fevereiro de 2019, temos já um Mecanismo amplamente renovado e reforçado. É um Mecanismo que em nada debilita os sistemas nacionais, antes pelo contrário. E que, pela via do RescEU, está dotado de meios próprios, para serem usados como retaguarda das capacidades nacionais (próprias e partilhadas).

Os instrumentos de coordenação e de troca de informação foram muito sofisticados, de modo a maximizar as respostas nacionais e a facilitar a partilha de meios no quadro do Mecanismo. Julgo que há condições para, a partir desta nova etapa, criar uma verdadeira Força Europeia de Protecção Civil, que possa fazer frente a situações de emergência causadas pela natureza ou pela acção humana. Eis um desafio para a próxima legislatura europeia.

Sim. Nova Presidente da Eslováquia. A eleição de Zuzana Caputova é uma enorme derrota para os socialistas e para o PS, nacional e europeu, que continua sem condenar os ataques ao Estado de Direito naquele país. 

Não. “Brexit”. A incerteza e instabilidade que a incapacidade de decisão do Parlamento britânico criou é, só por si, geradora de enormes danos para as pessoas e economia.

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