A face oculta do “Brexit”

A poucas semanas das eleições europeias, o Parlamento Europeu prepara-se para receber, porventura, o maior contingente de deputados antieuropeus. Um facto absolutamente paradoxal ou talvez não. Afinal, tudo depende da nossa vontade.

O Reino Unido aderiu às Comunidades Europeias no ano de 1973, conjuntamente com o Reino da Dinamarca e a República da Irlanda. As Comunidades Europeias passaram, então, de seis para nove Estados membros. É útil recordar esta data, pois nessa altura ainda não existia a União Europeia que nasceu em 1992 com o Tratado de Maastricht. Isto significa que o Reino Unido esteve sempre presente nos grandes momentos de reforma do projeto europeu e, portanto, de revisão dos tratados europeus desde o Ato Único Europeu de 1986 até ao Tratado de Lisboa de 2007. Desse registo histórico diga-se, em abono da posição britânica, muitas foram as cláusulas de exceção, as declarações anexas e os opting out requeridos pelo Reino Unido que, em matéria europeia, sempre foi um Estado relutante, embora muito útil no que diz respeito ao equilíbrio de poderes entre as principais potências europeias.

No respeito pela história longa do Reino Unido e pela arte da sua diplomacia, não vou, desta vez, pronunciar-me sobre os últimos episódios do “Brexit” nem farei qualquer prognóstico sobre os próximos episódios, não obstante um verdadeiro argumento-guião digno da série Yes, Minister. Não é impunemente que quase sete décadas de construção europeia são tratadas com tal ligeireza no âmbito de um processo referendário e que um projeto desta complexidade seja objeto de um espetáculo político-parlamentar tão pouco edificante, que nos empurra perigosamente para as linhas vermelhas do “Hard Brexit”, agora que são passados três anos sobre o referendo proposto pelo antigo primeiro-ministro britânico David Cameron de má memória.

Em vez disso, prefiro olhar para algumas nuvens negras que pairam sobre o projeto europeu, no curto e médio prazo, e em relação às quais o “Brexit” é apenas mais um sinal preocupante. Eis alguns tópicos que considero muito relevantes nesta altura.

  1. A desvalorização geoestratégica das relações transatlânticas: a desvalorização do pilar transatlântico e a emergência da frente geopolítica Indico-Pacífica é a questão mais relevante e a dúvida que nos assalta é a de saber se nos encontramos num plano inclinado que irá colocar em causa a centralidade do mundo atlântico e ocidental ou se se trata apenas de uma conjuntura infeliz associada a maus protagonistas, digamos, uma crise passageira que as próximas eleições nos EUA e no Reino Unido irão recolocar na direção certa; mas a dúvida permanece.
  2. A continentalização do projeto europeu e a maior centralidade da “Europa do Meio”: na mesma linha de argumentação, a desvalorização das relações transatlânticas irá acentuar uma tendência que parece irrecusável, isto é, uma pressão constante proveniente do lado leste, quer dos países de Visegrado (Polónia, Hungria, Eslováquia e República Checa), cada vez mais na sombra da área de influência da Rússia, quer da Turquia e do Médio Oriente; estas pressões não deixam muito espaço para os “pequenos problemas transatlânticos” do mundo ocidental desenvolvido;
  3. A União Europeia da segurança e da defesa: a União Europeia, a curto e médio prazo, está obrigada a criar um pilar europeu de segurança e defesa no interior da NATO ou em parceria estruturada com a NATO; todavia, a repartição de recursos escassos entre política doméstica e política de relações exteriores atravessa uma fase muito crítica e resulta mais agravada ainda pela eventual saída do Reino Unido, não apenas por razões orçamentais, mas, sobretudo, por se tratar de um parceiro fundamental em matéria de segurança e relações exteriores; este impasse e o compasso de espera que se seguirá terão um efeito de ricochete na política doméstica e de vizinhança, como é bem visível no caso da política de imigração e refugiados;
  4. A geopolítica europeia em matéria energética não está ainda consolidada: a Europa das energias renováveis, do combate às alterações climáticas, da descarbonização e da economia circular vai colidir, mais tarde ou mais cedo, com os fornecedores convencionais de combustíveis fósseis que usam todo o seu poder e influência para alterar a geopolítica europeia no que diz respeito aos abastecimentos energéticos; os fornecedores russos e os gasodutos que alimentam a Europa Central, os países fornecedores do Médio Oriente, alguns países da África do Norte (Argélia e Líbia), e agora, também, os EUA com os seus xistos betuminosos, irão pressionar fortemente para dividir a política energética comum da União Europeia; mais próximo de nós, lembremos que a Argélia, com graves problemas internos neste momento, abastece a Península Ibérica de gás que atravessa o Mediterrânico e entra em Portugal pelo interior de Espanha; parece-me evidente que a continentalização da política europeia terá tendência para esquecer a política transatlântica também nesta matéria;
  5. O mercado único digital e a cibersegurança europeia: fazer avançar o projeto europeu implica apostar decisivamente nas redes transeuropeias, isto é, nas chamadas indústrias de rede que terão na sua base uma pesada infraestrutura tecnológica e digital; sem mercado único digital estas infraestruturas ficam muito vulneráveis e a cibersegurança europeia será imediatamente confrontada com um risco elevado e permanente; os factos recentes anunciam-nos a chegada iminente de uma guerra fria informática e cibernética, esperamos, pois, que a política de relações transatlânticas nos poupe ao espetáculo triste de uma divisão profunda no universo ocidental acerca do cibercrime e da segurança coletiva europeia; a União Europeia joga aqui uma das suas cartas mais importantes para a continuação do projeto europeu;
  6. A pulverização e radicalização do espetro político-partidário europeu: estamos a assistir, em direto, à formação de uma internacional radical que não é contra a Europa, mas contra esta União Europeia e os partidos que a controlam, uma internacional radical cuja coloração está cada vez mais próxima de uma internacional neofascista europeia liderada pelo ministro italiano Salvini; acresce, além disso, a multiplicação de situações regionais ligadas ao independentismo, ao separatismo e ao autonomismo que podem gerar graves equívocos, e pode ser, mesmo, o “Brexit” a desencadear este movimento político com referendos na Escócia e nas duas Irlandas, com repercussões que são difíceis de antever neste momento em outros países europeus;
  7. A desafeição político-emocional do cidadão europeu: estamos a poucas semanas das eleições gerais em Espanha em abril, que podem ser a primeira grande surpresa neste movimento de radicalização, e a pouco mais de um mês das eleições europeias; o espetáculo do “Brexit” continua, o debate político é de uma pobreza franciscana e eu interrogo-me se é este o cartão de visita para um jovem que vai votar pela primeira vez em eleições europeias; sabemos todos que o projeto europeu foi um empreendimento elitista, concebido de cima para baixo, que nas primeiras décadas beneficiou do apoio político das classes médias, mas que, hoje, face ao envelhecimento e empobrecimento de franjas importantes dessas classes, está, ele também, em crise profunda de afirmação, ou seja, temos os jovens e uma boa parte da sociedade sénior atingidos por uma enorme desafeição político-emocional pelo projeto europeu que, muito provavelmente, acabará em abstenção eleitoral ou num voto de protesto. E já não falo da falta de reputação dos atuais líderes políticos europeus.
  8. O risco de periferização de Portugal no quadro da continentalização europeia: é neste contexto geral que se deve reconsiderar a posição europeia de Portugal, sobretudo, se esta desvalorização transatlântica se confirmar e persistir; se assim for, a nossa zona económica exclusiva alargada e a estratégia insular que lhe corresponde, dois trunfos fundamentais para as nossas ambições, podem ser objeto de um compasso de espera muito dilatado no tempo e sofrer, por causa disso, uma desvalorização geoestratégica muito relevante ou, então, na melhor das hipóteses, teremos de redefinir, no plano bilateral, a nossa política marítima com todos os aliados transatlânticos, a norte e a sul;
  9. Alguns equívocos na triangulação Portugal-Espanha-Reino Unido: se se confirmar a saída do Reino Unido, com acordo e um período longo de transição até ao final de 2020, espero eu, podem irromper, ainda assim, alguns acontecimentos menos agradáveis por razões que se prendem com a obtenção de vantagens futuras no relacionamento com o Reino Unido; as relações históricas entre Portugal e o Reino Unido podem não ser bem entendidas e recebidas pelo vizinho espanhol e, por um efeito de ricochete, “problemas menores” que ainda permanecem, como são Almaraz, os transvases de água, a poluição dos rios, a jurisdição de algumas ilhas, mesmo o estatuto de algumas cidades de fronteira, podem regressar inopinadamente e ser a fonte de um contencioso bilateral; a este propósito, é especialmente sensível qualquer precipitação para obter vantagens discriminatórias no futuro relacionamento com o Reino Unido, por exemplo, em matéria turística, residencial e fiscal, visando atrair a sede de empresas que saem do Reino Unido por causa do “Brexit”.
  10. A nova geopolítica peninsular pode sofrer mudanças significativas: ponderados todos os fatores geopolíticos anteriores e as dúvidas que pairam sobre a política doméstica de cada Estado membro da União Europeia nesta fase, a saída do Reino Unido, em especial uma saída mais turbulenta, e a marginalização da vertente atlântica podem precipitar uma política peninsular menos monótona e mais agressiva, sobretudo se houver uma radicalização da situação político-partidária nos dois países e uma exacerbação do papel dos regionalismos nessa evolução; por outro lado, alguns conflitos entre o Reino Unido e a Espanha por causa de Gibraltar, da política de defesa e segurança da NATO ou por razões de cibersegurança podem causar a Portugal alguns embaraços e prejudicar as nossas relações conjuntas, por exemplo, na política euro-mediterrânica, euroafricana e latino-americana.

Nota Final

Aqui chegados, atrevo-me a dizer que o Reino Unido e a União Europeia sofrem de cansaço mútuo ou síndroma da fadiga recíproca. Assim sendo, o Reino Unido, que nunca morreu de amores pela União Europeia, talvez mereça, mesmo, uma ausência prolongada e nós, também, de descansar da sobranceria imperial do Reino Unido. Seja como for, perante a radicalização dos movimentos nacionalistas tem sido um milagre manter a “união dos 27” face à saída do Reino Unido e impedir que algumas sensibilidades políticas mais nervosas procurem, de algum modo, balcanizar a política europeia. O risco existe, esperemos que, também aqui, não surja uma liga do norte, uma liga do sul e uma liga do leste.

A poucas semanas das eleições europeias, o Parlamento Europeu prepara-se para receber, porventura, o maior contingente de deputados antieuropeus. Um facto absolutamente paradoxal ou talvez não. Afinal, tudo depende da nossa vontade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico 

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