Música intemporal para Calouste Gulbenkian

Um mundo entre dois mundos evocado num concerto de homenagem com obras de Arvo Pärt e Tigran Mansurian.

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Calouste Sarkis Gulbenkian viveu entre dois mundos, o Oriente onde nasceu e o Ocidente onde se fixou DR

As comemorações dos 150 anos do nascimento de Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) tiveram na sexta-feira um ponto alto graças a um concerto especial que deu a ouvir duas composições percorridas por uma inquietante introspecção expressiva: o Lamento de Adão, de Arvo Pärt (n. 1935), e o Requiem de Tigran Mansurian (n. 1939), escrito em memória das vítimas do terrível genocídio arménio, perpetrado pelas autoridades do Império Otomano entre 1915 e 1917. Este gesto de homenagem ao diplomata, homem de negócios, filantropo e coleccionador de arte de origem arménia a quem Portugal tanto deve, através da fundação que deixou em testamento ao nosso país, traduziu-se num programa de forte impacto emocional interpretado pelo Coro e Orquestra Gulbenkian e pelos cantores Cecília Rodrigues e Armando Possante, sob a direcção de Tõnu Kaljuste.

Se Arvo Pärt é um dos compositores do nosso tempo mais conhecidos do público, Tigran Mansurian tem estado pouco presente nas programações em Portugal, pelo que esta constituiu uma óptima oportunidade para tomar contacto ao vivo com uma das suas obras marcantes, encomendada em 2010 pela Orquestra de Câmara de Munique e pelo Coro de Câmara RIAS, de Berlim, e registada em CD pela ECM em 2017.

Resultado de uma encomenda das cidades de Istambul e Tallinn (Capitais Europeias da Cultura em 2010 e 2011, respectivamente), o Lamento de Adão, de Pärt, baseia-se num texto de São Silvano Atonita (1866-1938), monge do mosteiro de São Pantaleão, no Monte Athos, na Grécia, que descreve a angústia de Adão quando foi banido do Paraíso. Nas palavras do compositor, Adão é aqui entendido como “um termo colectivo que abarca a Humanidade na sua globalidade e cada indivíduo, independentemente do tempo, da época, da classe social ou do credo religioso”. O coro assume assim o papel de narrador colectivo e individual, com o pungente monólogo central do protagonista a cargo das vozes masculinas, e o texto em eslavo eclesiástico (língua litúrgica das igrejas ortodoxas eslavas) confere uma cor sonora especial à obra, derivada das suas especificidades fonéticas. O habitual estilo etéreo e subtil de Pärt é facilmente reconhecível, mas esta obra apresenta maior profusão de contrastes, alguns deles abruptos (no que diz respeito às dinâmica, às texturas e ao uso do silêncio), que convergem numa estrutura de grande fôlego assente na relação texto-música. O Coro e a Orquestra Gulbenkian deram voz à escrita minuciosa de Pärt, sem perder de vista a criação das suas mágicas atmosferas sonoras, contando com a experiente direcção de Tõnu Kaljuste, distinguido com um Grammy em 2014 pela gravação desta mesma obra para a etiqueta ECM.

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O maestro estónio Tõnu Kaljuste MARTIN LAZAREV

O rigor e a afinidade do maestro estónio com este universo musical contribuíram também para o êxito da interpretação do Requiem de Tigran Mansurian, obra que pode igualmente ser entendida como um lamento musical colectivo e intemporal. No prefácio da partitura, o compositor refere a dificuldade em “por um lado conciliar as tradições distintas da Igreja Arménia e da Igreja Católica Romana e, por outro, o compromisso entre a linguagem musical do Ocidente e do Oriente”. A modalidade e os traços melódicos da tradição arménia emergem da composição em conjunto com a assimilação e a recriação de referências distintas e combinam-se com uma vasta paleta de recursos e efeitos no tratamento do material musical: pizzicatti, trémulos, harmonias ousadas, contrastes dinâmicos e variedade de texturas que tanto podem dar forma a uma escrita compacta como a passagens de delicada transparência, seja com recurso a todas as forças vocais e orquestrais, seja através das vozes do coro a cappella ou das circunscritas passagens solísticas. No seu todo, elementos musicais que descontextualizados podem parecer díspares formam uma arquitectura sonora fascinante que ganha sentido em função do texto em latim da Missa de Defunctos e atinge momentos de tocante profundidade, como por exemplo no Lacrimosa. O Coro Gulbenkian demonstrou mais uma vez proficiência técnica, plasticidade expressiva e entrega emocional, e a orquestra correspondeu bem aos múltiplos desafios da partitura de Mansurian. Os solos vocais contaram com o timbre cintilante e a eloquência do canto da soprano Cecília Rodrigues e com o poder dramático do barítono Armando Possante, pujante na sua primeira intervenção, meditativo nas belas frases melódicas da segunda, conforme o texto e a música exigiam.

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