Silêncio, que se vai jogar uma investigação

Unheard leva-nos a resolver mistérios com as conversas que vamos ouvindo. Podia ter corrido bastante mal.

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Unheard é um videojogo que assenta no poder da audição, colocando esse sentido no centro de tudo o que tem para contar. É uma proposta conduzida pela narrativa, mas em vez de lermos ou de tomarmos decisões com base na jogabilidade tradicional, a resolução das diferentes investigações é feita graças à nossa agilidade dedutiva.

Demorou-me um pouco mais de quatro horas para encontrar as soluções para os cinco casos incluídos na obra da NEXT Studios – um que serve para explicar como é que os processos funcionam e os restantes onde colocamos a aprendizagem em prática. Mesmo que o efeito surpresa inicial se vá desvanecendo, é ainda assim uma obra que sai fora do comum e que não é tão simples quanto ficar parado a escutar as conversas dos outros.

Em mapas que são apresentados como plantas dos locais, podemos movimentar-nos pelas várias divisões que os compõem. Contudo, ninguém nos consegue ver e não conseguimos interagir directamente com quem está a falar.

Na parte inferior do interface do utilizador temos controlos para controlar o decorrer do áudio como os que são habituais em qualquer leitor de música. O que ouvimos numa determinada divisão não é o mesmo que está a ser proferido noutros locais do cenário.

Na prática isto obriga-nos a explorar praticamente todos os recantos, ouvindo as conversas e seguindo as personagens para testemunhar as suas próximas interacções, avançando e recuando o tempo para ir recolhendo pormenores que são ditos na nossa ausência.

Começamos cada um dos casos sem saber quem é quem. Temos personagens marcadas com um círculo nos cenários e uma lista de nomes no canto superior direito. O primeiro objectivo é descobrir que nome pertence a cada voz, algo fundamental para a descoberta da verdade no final de cada caso.

Os casos vão aumentando de complexidade. Se no primeiro trabalhamos com a correspondência de quatro nomes, no final são mais de uma dezena de vozes e de nomes. Isto capta completamente a nossa atenção, pois a verdade que procuramos no final de cada situação ganha aqui expressão na forma como respondemos correctamente a uma série de perguntas sobre o que aprendemos durante as conversas escutadas.

Se no primeiro caso há apenas que descobrir quem escondeu as drogas num caso com irmãos gémeos, não demora muito até termos que descobrir quem é que levou uma bomba para uma esquadra e quem é que a detonou. Sem grande surpresa, o caso que me causou mais dificuldades foi o último, pois à pergunta “Quem são os verdadeiros pacientes?” de um hospital psiquiátrico, o jogador terá que responder com cinco nomes. É um caso com catorze personagens a movimentarem-se pelas divisões, pelo que há muito para digerir e várias notas para tirar.

Antes tinha ficado para trás um caso em que numa exposição aparece misteriosamente uma moldura vazia, com o jogador a ter que investigar quem é que roubou o quadro verdadeiro primeiro e quem é que ficou com o objecto no final da gravação. E há também um caso que decorre num teatro, com o grande ponto de interrogação a ser sobre um homicídio. Unheard é um jogo com muito fumo e muitos espelhos, não se escusando a colocar algumas rasteiras para apurar quem é que está verdadeiramente atento.

Ainda que algumas gravações demorem apenas cinco minutos, o que não é obviamente o tempo que o jogador demora a concluir o caso (há que somar o tempo que andam com o áudio para trás e para frente enquanto escutam o que é dito nas diferentes divisões), há outros casos em que esse tempo passa os dez minutos, o que oferece uma considerável quantidade de material para as nossas investigações. Ocasionalmente há a incerteza de nos ter falhado algum pormenor que troca as voltas às respostas finais, assim como a ocasional frustração de termos perdido o fio à meada.

A melhor forma acaba por ser mesmo trabalharem as declarações de cada um de uma forma o mais próxima possível do individual, acompanhando determinada personagem pelas diferentes divisões até começarem a ter uma ideia de quem interage com quem e assim lançar a rede à procura das reviravoltas no argumento, nos detalhes que mudam o decorrer dos acontecimentos.

Unheard conta ainda com uma ferramenta que nos permite escrever os nossos próprios comentários. Por exemplo, se precisarem de se lembrar de algo ou se acharem que algo aconteceu no minuto 2'12, podem escrever um comentário ou nota que fica atribuído a esse momento. Quando chegar a essa marca, mesmo que estejam a escutar outras personagens em divisões diferentes, essa nota aparece no ecrã para complementar a investigação, servindo para unir melhor as pontas na interpretação.

Tudo isto vai resultando porque a NEXT Studios compreendeu desde cedo que seria necessário um grupo de actores capaz de entregar personalidades díspares apenas com as vozes. É precisamente isso que acontece: de forma equilibrada, a dicção permite esse desfecho, ainda que não se escusem a alguns trechos em que a escrita apresenta algum desleixo.

Não se trata de um argumento mau, até porque há reviravoltas interessantes e minimamente sustentadas, mas sim de diálogos que nem sempre são naturais. Isso nota-se no final da obra, quando os casos são resolvidos e a derradeira pergunta é feita ao protagonista de uma forma algo atabalhoada. De salientar que as diferentes opções dadas levam a diversos finais para o jogo.

Ainda que o grafismo seja pouco relevante numa obra que vive de e para a sonoplastia, o aspecto das plantas dos edifícios contém alguns detalhes para criar atmosfera. Curiosamente isto provocou o mesmo efeito sentido quando se lê um livro ou se ouve um podcast: a imaginação não só cria personagens baseadas nas vozes como também cenários a cores e a três dimensões.

Unheard tem algumas falhas, mas é arrojado na forma que arranjou para transmitir a sua trama através do som. Podia ter corrido bastante mal, pois não seria preciso muito para que o interesse de quem joga se desvanecesse. Mas, além da vocalização, o design de som com efeitos sonoros permite cimentar a atmosfera que só beneficia os processos da investigação. É obviamente recomendado o uso de auscultadores.

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