Uma cama com vista para o significado da vida (e da morte)

Miguel Gonçalves Mendes encontra-se com Valter Hugo Mãe numa cama de hotel com vitrine, para mostrarem O Sentido da Vida. O realizador está já a fazer a montagem para uma série e uma longa-metragem com estreia anunciada para 2020.

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Inês Fernandes
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Era impossível não associar o quadro a que pudemos assistir nas noites deste fim-de-semana no Hotel Zero, no Porto, à situação que há meio século fez história noutro hotel, o Hilton de Amesterdão, e que ainda recentemente voltou a ser notícia: o bed-in pacifista de John Lennon e Yoko Ono, quando ainda decorria a Guerra do Vietname.

Desta vez, contudo, Miguel Gonçalves Mendes e Valter Hugo Mãe não estavam em pijama, nem dormiram juntos no quarto-vitrine com que o novo hotel na Baixa portuense inaugurou um novo conceito de alojamento: se no seu miolo disponibiliza mais de 70 quartos-boxes sem janelas, no piso da entrada oferece a pernoita a artistas e/ou performers que aceitem mostrar(-se) a quem entra alguma criação pessoal.

Quando soube do projecto, Miguel Gonçalves Mendes, autor de José e Pilar e de Labirinto da Saudade, achou que seria uma boa oportunidade para dar sequência à campanha de crowdfunding, lançada já no final do ano passado, para financiar a parte final da produção do filme que o tem ocupado nos últimos anos, O Sentido da Vida.

“Achei muito gira esta proposta do free room, aberto a quem queira vir aqui propor ideias e performances, quase como um laboratório de criação e de partilha com o público”, justificou o realizador ao PÚBLICO, sexta-feira à noite, na primeira das duas noites em que se disponibilizou para responder a esse desafio.

Às primeiras horas dessa noite, o público era ainda escasso, e não seria certamente com a recolha do 1 euro por pergunta – “5 euros para as questões mais calóricas e atrevidas”, desafiava Valter Hugo Mãe – que a produção de O Sentido da Vida iria aí reunir os 350 mil euros ainda em falta para a concretização do filme (dum orçamento global de 1,8 milhões de euros). Mas a performance foi ocasião para, no seu regresso ao Porto – uma das paragens da autêntica volta ao mundo que foi a rodagem de O Sentido da Vida, com mais de 50 mil quilómetros percorridos em cinco anos –, Miguel Gonçalves Mendes mostrar e publicitar o seu trabalho.

Questionar o destino

O novo filme, com estreia anunciada para 2020, é, diz a sinopse, “uma viagem ao redor do mundo a fim de questionar a nossa existência através das indagações de um jovem brasileiro, portador de uma doença hereditária rara e sem cura”. Iniciada em 2012, a rodagem passou por terras como o Japão, a Islândia, o Dubai, o Canadá, o Brasil, a Argentina, ou seja, a rota de disseminação da paramiloidose, também conhecida como “doença dos pezinhos”, e que, tendo tido origem na região do Porto, foi levada pelos portugueses nas viagens de descoberta desde o século XV.

Pelo caminho, entretanto, o jovem brasileiro escolhido para protagonista de O Sentido da Vida, Giovane Brisotto, morreu no início de 2018, aos 31 anos.

“Foi uma grande comoção, para nós, o desaparecimento do Giovane”, disse Valter Hugo Mãe ao PÚBLICO após o visionamento dos primeiros vinte minutos do filme, parte do programa que Miguel Gonçalves Mendes propôs no quarto envidraçado do hotel Zero.

O escritor, que estava também a ver essas imagens pela primeira vez, é uma das figuras que fazem a “ficha artística” do filme, tendo-se associado ao projecto desde a primeira hora. “Recebi uma chamada do Miguel, creio que em 2011, e disse logo que sim. Eu tinha adorado José e Pilar, por todos os motivos, até porque também estava afectivamente implicado com o Saramago, a quem devo uma grande gratidão”, diz o autor de O Remorso de Baltazar Serapião (Prémio Literário José Saramago em 2007).

Além do protagonista Giovane Brisotto, Valter Hugo Mãe, morador em Vila do Conde – a terra normalmente associada à origem da “doença dos pezinhos” –, é uma dessas personagens de diferentes nacionalidades que são inquiridas por Miguel Gonçalves Mendes sobre “o sentido da vida”. Ao lado do astronauta dinamarquês Andreas Mogensen, da ex-Presidente brasileira Dilma Roussef, do jornalista australiano Julian Assange, do padre islandês Hilmar Örn Hilmarson, da artista japonesa Mariko Mori… E de mais meia centena de figuras que vão desfilando pelo ecrã. Menos John “Monty Python” Cleese, que, apesar de uma viagem feita de propósito ao Canadá, o realizador não conseguiu conquistar para o seu projecto. Vingou-se, de algum modo, roubando-lhe o título O Sentido da Vida, mesmo se, num dos diários que foi escrevendo ao longo da rodagem, Miguel Gonçalves Mendes tenha considerado que “seria mais correcto escolher O Significado da Vida – no fundo, a questão primordial é essa”.

“O meu trabalho vai sempre parar a Portugal, mesmo se aqui tentei fazer um filme global que de alguma forma condensasse o meu olhar sobre este mundo esquizofrénico, que tem tanto de bom como de mau”, disse o realizador ao PÚBLICO após a revelação das primeiras imagens no quarto Zero.

O Sentido da Vida abre com imagens do cosmos recolhidas a partir da nave americana Voyager, ouvindo-se em fundo uma mensagem do anterior secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e a música de Elvis. Depois, num rápido zoom para uma praça de Tóquio, chega a… Valter Hugo Mãe.

Descontraidamente sentados na cama-vitrina do hotel portuense, o escritor e o realizador vão comentando estas primeiras imagens, que falam da doença e da morte, mas onde sobretudo defendem a vida. “O Saramago dizia: ‘Não podemos estar sempre a lamentar e a chorar sobre tudo; isso é uma atitude profundamente burguesa. Se o nosso mundo é horrível, e porque o tempo está sempre a contar, temos de nos levantar da cadeira, arregaçar as mangas e relançar a nossa vida’”.

É à luz deste espírito de combate que Miguel Gonçalves Mendes enfrenta as dificuldades com que vem deparando para a finalização do filme, que a sua mãe – que a certa altura entrou também no quarto via FaceTime – classificou como “um projecto de loucos”. “Depois de O Sentido da Vida, tens de parar ou optar por algo menos consumidor de ti próprio”, diz-lhe. Talvez por isso, o realizador já anunciou que, depois de vários documentários, vai virar-se agora para a ficção e adaptar… O Evangelho Segundo Jesus Cristo, novo regresso a Saramago.

Antes disso, contudo, é preciso reduzir as duas mil horas de rodagem de O Sentido da Vida para uma série de oito horas – que, tendo-se gorado a hipótese Netfix, vai passar seguramente na RTP e também na Globo, no Brasil – e uma longa-metragem de duas horas​. E continua também a ser preciso reunir os 350 mil euros em falta (menos os 60 euros, “uma verba simbólica”, nota, angariados este fim-de-semana no Porto).

“É um trabalho gigantesco para fazer num ano”, realça Miguel Gonçalves Mendes. Sempre com aquela energia de quem está permanentemente a correr contra o tempo.

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