Basta apenas um homem

Não é um romance “da História”, mas um romance de histórias de pessoas comuns que traçam o seu próprio caminho, fazem opções e suportam as consequências dos seus actos.

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Notável capacidade para captar o “ar do tempo” nas décadas que se estenderam até ao fim do sec XX pedro cunha/arquivo

Maré Alta, o terceiro romance de Pedro Vieira, começa com um nascimento e acaba com um funeral, cerca de oito décadas depois. Augusto, filho de Ana e de Abílio, vê a luz no ambiente rural do Portugal do princípio do século XX. Mas este acontecimento auspicioso contraria o clima de agitação política, social e moral do país que, à semelhança do resto da Europa, é abalado pelos ventos da mudança. A monarquia moribunda, o regime ditatorial de João Franco, contra o qual o rei D. Carlos aparenta nada poder fazer, e o estado geral do país, atrasado e falido, contribuem para o intensificar das lutas fratricidas e da insatisfação generalizada.

A acção acompanha o fluxo do tempo: o regicídio, os tempos caóticos da 1ª República, as lutas entre facções, entre partidos, entre ideologias; a hecatombe da Iª  Guerra, o desastre de La Lys, a “pneumónica”, a rápida sucessão de presidentes de uma República débil e fratricida, o assassinato de Sidónio Pais, a ascensão de Salazar — nunca mencionado pelo nome, omnipresente como o “doutor de Coimbra” —, a insurreição operária da Marinha Grande, a repressão, a ilegalização dos sindicatos, a Guerra Civil de Espanha, as lutas sangrentas no país vizinho, prenunciando a IIª Guerra; a vaga de refugiados, a ditadura a fortalecer-se na Península Ibérica: as guerras coloniais, as forças de resistência ao regime, o Maio de 68, a Revolução de 1974 e os anos subsequentes.

Maré Alta não é, porém, um romance “da História”, mas sim um romance de histórias de pessoas comuns que traçam o seu próprio caminho, fazem opções e suportam as consequências dos seus actos. Aí vai buscar toda a sua força e todo o seu interesse, uma vez que os homens e mulheres que seguem o curso das suas existências ao longo destes anos — na sua condição de espectadores e, simultaneamente, de actores — possuem uma espécie de “doença da liberdade” que não lhes dá descanso na (suposta) Arcádia lusitana. Vicente e Augusto — e os seus alter egos clandestinos, Samuel e Alfredo — recusam o status quo, rebelam-se, procuram outras vias e agitam-se, seja nos “bidonvilles” parisienses, seja no furacão das lutas operárias, na prisão e no exílio, entre golpes falhados, acções abortadas, perigo e deambulações sem fim. Afonso parte em sentido contrário, para essa América cheia de promessas e, também, de solidão, perdendo o contacto com os que ama. As personagens sucedem-se, entram em cena, aparentemente separadas umas das outras, mas permanentemente em rota de colisão, sejam eles e elas, sejam os seus descendentes. O universo feminino é também importante, uma vez que reflecte as diferentes atitudes das mulheres, na sua infinita complexidade, perante situações que, na maioria dos casos, não têm poder para influenciar ou alterar. Afastadas de maridos e filhos, acumulando rancores ou desejosas de mudança, indefinidamente acorrentadas ao papel de mães e companheiras, levam uma existência de sombria frustração e de permanente revolta interior.

Pedro Vieira mostra que está tão familiarizado com o presente — vejam-se os seus anteriores romances. Última Paragem em Massamá e O Que não Pode Ser Salvo — como com o passado, evidenciando uma notável capacidade para captar o “ar do tempo” nas décadas que se estenderam quase até ao fim do século XX. O retrato minucioso e apaixonante que nos deixa deste país, à maneira de um Victor Hugo ou de um Balzac (da Comédia Humana) , é ilustrado por uma linguagem rica e luxuriante que demonstra uma invejável mestria. As suas múltiplas personagens, com vidas difíceis, pautadas pela incerteza, pela insegurança e por um medo que ronda sempre como um fantasma malévolo, são o espelho de uma pátria com dificuldades em sarar as feridas abertas por uma longa ditadura, despertada por uma Revolução, mas sempre em luta com o passado. A pobreza, o atraso económico e intelectual, a emigração forçada, os trabalhos ocasionais em regime de quase escravatura, as perseguições políticas, o enraizamento da religião como forma de resistência ao progresso e à democratização, as tensões familiares, o desmoronamento de um tecido social frágil porque alicerçado num individualismo feroz, mascarado de mansa submissão, são facetas da nossa identidade que o autor desvenda com habilidade e desassombro. Se há quem ainda imagine este país como o de “brandos costumes” — com as suas “casas portuguesas” “felizes na pobreza” — terá, na leitura deste livro, a oportunidade de mudar de ideias e enfrentar uma outra realidade. A acção estende-se até esses anos 80 durante os quais, com a entrada na União Europeia, parecia ter-se virado a página do isolamento e da ancestral tristeza. No entanto, Pedro Vieira não deixa espaço para euforias. Os malogros, as frustrações, as feridas antigas não desaparecem facilmente e hábitos atávicos podem ressurgir a qualquer momento.

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