Terá o jornalismo sete vidas como os gatos?

Os problemas e desafios que o jornalismo enfrenta estão neste fim-de-semana em debate num colóquio no Centro Cultural de Belém.

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O Presidente da República também já se mostrou preocupado com a crise no sector Joana Gonçalves

A mentira já corre nas redes sociais desde 2015. Nesse ano, foi tirada uma fotografia à eurodeputada Marisa Matias e ao primeiro-ministro grego a celebrarem, juntos, o resultado do Syriza nas eleições de Janeiro. A partir de então, não têm parado de circular na Internet rumores que dão conta de um suposto casamento entre ambos. A fotografia é verdadeira, a história do casamento é falsa. No início, Marisa Matias e Tsipras desvalorizaram. Mas, nos últimos tempos, como voltou em força e com a proximidade das eleições europeias, a cabeça-de-lista de Bloco de Esquerda começou a preocupar-se com o impacto desta fake news na campanha.

É que aos candidatos independentes do BE têm chegado cartas de indignação, considerando que Marisa Matias não se devia recandidatar, uma vez que tenciona casar-se e mudar-se para a Grécia. “Pedi a essas pessoas que desmentissem. É a construção de uma narrativa para descredibilizar uma candidatura”, diz a eurodeputada.

Este é apenas um pequeno exemplo de um problema muito maior chamado fake news. Uma gota no oceano de desinformação que inunda a Internet e as redes sociais. Que atinge campanhas eleitorais, que contamina o debate livre e informado em democracia, e que também lança novos desafios ao jornalismo.

E a questão da desinformação também é apenas uma, entre as muitas que o jornalismo enfrenta, como o impacto das mudanças tecnológicas, a informação gratuita, as quebras publicitárias, um modelo de negócio ineficaz, um sector precário.

Para debater as dificuldades que ameaçam o jornalismo, a Fundação Centro Cultural de Belém organiza, neste fim-de-semana, um colóquio, com coordenação de Luís Osório, que se chama precisamente “Sete vidas - Sete debates. O futuro do jornalismo”.

Em Novembro, foi o próprio Presidente da República quem lançou a questão: “A grande interrogação que eu tenho formulado a mim mesmo é a seguinte: até que ponto o Estado não tem a obrigação de intervir?” Partindo da interrogação lançada por Marcelo Rebelo de Sousa, a Fundação Centro Cultural de Belém arregaçou as mangas e juntou vozes que conhecem o sector para discuti-lo.

É certo que o desafio da desinformação não é novo, mas adquire nos dias de hoje outros contornos: “É a dimensão viral. Dantes, era um boato num café, ficava circunscrito. Hoje o café chama-se Internet”, diz a presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco. Nesse “café” virtual, a desinformação circula rapidamente, partilhada e reproduzida vezes sem conta. Sofia Branco fala em “irresponsabilidade digital” e em “iliteracia”.

Nova disciplina

Não é a única a defender que as escolas deviam formar os jovens para serem leitores atentos: “Como procuram informação? Como sabem se as fontes são fidedignas?” Mas nem só os mais novos precisam desta formação: “Há uma grande iliteracia digital na faixa etária acima dos 60 anos, que partilha indiscriminadamente conteúdos”, continua Sofia Branco, acabando, no entanto, por defender que todos precisamos de formação, jornalistas incluídos, até porque os mecanismos de desinformação são cada vez mais sofisticados.

Ainda no início da semana, dois investigadores do ISCTE, Rui Brites e Manuel Pereira, defenderam, em declarações à agência Lusa, que se devia criar uma disciplina obrigatória na escola para ensinar literacia para os media ou literacia digital.

A mesma sugestão foi feita pela Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC) que, num estudo pedido pelo presidente da Assembleia da República, vai mais longe, sugerindo mesmo, entre outras medidas, que o Parlamento pondere a criação de legislação para definir e sancionar a desinformação online.

Há cerca de um mês, o PS apresentou uma recomendação ao Governo para adoptar medidas para a aplicação em Portugal do Plano Europeu de Acção contra a Desinformação. Pouco depois, seria chumbada no Parlamento a proposta do Bloco para a criação de um imposto sobre determinados serviços digitais e, com essa receita, criar um fundo para ajudar a imprensa.

O vice-presidente da Assembleia da República, José Manuel Pureza, que falará na sessão final do ciclo de debates no Centro Cultural de Belém, defende que há “duas coisas a fazer no imediato” pelo sector: “Desde logo, o Estado não se pode demitir da responsabilidade de, em articulação com os media, garantir a sustentabilidade e a independência da comunicação social”. Numa resposta enviada ao PÚBLICO por escrito, o bloquista acrescentou ainda ser “imprescindível que a comunicação social discuta e articule respostas para a crise do jornalismo, para os problemas impostos pela escassez de recursos e profissionais” e “para a ameaça crescente das campanhas de desinformação”.

Já a deputada Carla Sousa, coordenadora dos socialistas na Comissão de Cultura e Comunicação, salientou ao PÚBLICO, entre outras medidas, a aprovação da directiva sobre os direitos de autor: “Foram dados ao nível europeu, com a participação de Portugal, passos importantes que terão consequências nos próximos anos.”

No final de Março, o Parlamento Europeu aprovou a nova, e polémica, directiva dos direitos de autor que dá aos autores a possibilidade de cobrarem pelos conteúdos disponibilizados pelas plataformas online, mesmo que o conteúdo tenha sido carregado pelos utilizadores. E também permite às empresas de comunicação social cobrarem pelos links em agregadores, como o Google News, e nas redes sociais.

A deputada enumera outras medidas: Na ordem jurídica interna, através de alterações à Lei da Cópia Privada, procurámos que os editores de imprensa beneficiassem das verbas provenientes da venda de suportes e dispositivos de armazenamento de dados, tais como, tablets e smartphones, que na lei de 2015 feita pelo anterior Governo não lhes eram atribuídas. E, no Orçamento de Estado para 2019, foi aprovada uma norma que garante tratamento igual em matéria de IVA às publicações em papel e digitais.”

O caminho do digital

A investigadora na área dos media, Felisbela Lopes, tem acompanhado as mudanças no sector nos últimos tempos, sendo uma das mais marcantes a que aconteceu no histórico Diário de Notícias que, apostando no online, passou de diário em papel a semanário em papel.

“Houve uma crise financeira global que se repercutiu na imprensa, por causa da publicidade. Anda tudo à procura de formas de negócio. Mas nós, em Portugal, ainda não descolámos a nível do digital. Não vejo grandes apostas contínuas e aprofundadas no digital, salvo algumas excepções”, diz a académica que defende que “o investimento no digital é o caminho”.

Socorre-se da sua experiência como professora universitária: “Os mais novos estão pendurados em ecrãs, telemóveis, ipads, os consumos de gerações mais novas fazem-se através do digital. Eu não vejo, na universidade, os meus alunos a comprarem jornais em papel e são de comunicação. É preciso uma aposta contínua, declarada e forte em conteúdos jornalísticos no digital”, afirma a investigadora que não alinha em anúncios de morte da imprensa, porque “o consumo de informação vai continuar”, mesmo que seja no formato digital. Para Felisbela Lopes, “o ponto a partir do qual toda a estratégia tem de ser desenhada” é este: “a informação tem de ser paga”, mas “as pessoas só pagam pela informação distintiva que não esteja em mais lado nenhum”.

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