Graça Fonseca: “Até acho que a Cultura devia pedir mais do que 1% do Orçamento”

Depois das polémicas acesas em torno da Lei do Cinema e do modelo de apoio às artes, Graça Fonseca acredita que o meio está pacificado. A descentralização das colecções de arte do Estado é agora uma das suas prioridades: o Museu do Chiado terá um pólo em Chaves e a Colecção de Fotografia do Novo Banco deverá mesmo ir para Coimbra.

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RUI GAUDÊNCIO

Chamada em Outubro a tutelar (e a pacificar) uma área que deu ao Governo mais problemas do que o primeiro-ministro esperaria, a ex-secretária de Estado da Modernização Administrativa Graça Fonseca assume estar a pensar as políticas públicas para a Cultura numa lógica de médio a longo prazo, bem para lá do curto horizonte deste mandato. É nessa perspectiva “duradoura” que a meta simbólica do 1% do Orçamento de Estado (OE) para a Cultura até pode revelar-se insuficiente, mas para reivindicar mais, argumenta, é preciso definir primeiro porquê e para quê. Ultrapassadas as tormentas da Lei do Cinema e do modelo de apoio às artes, a terceira ministra da Cultura desta legislatura está agora focada na concretização do novo regime de autonomia de gestão para os museus, monumentos e palácios nacionais e numa gestão descentralizada das colecções do Estado.

António Costa restabeleceu o Ministério da Cultura (MC) no organograma do Governo, mas deu-lhe uma dotação que, no seu melhor, em 2019, anda apenas pelos 0,4% do OE. Não é uma contradição?
Não. O Governo deixou claro desde o início que tinha dois grandes objectivos estruturais: retirar Portugal do procedimento por défice excessivo, o que foi alcançado, e devolver rendimentos. Para os cumprir e em simultâneo prosseguir o esforço de investimento em políticas públicas, não seria possível retomar níveis pré-crise. A verdade, ainda assim, é que o orçamento da Cultura foi o que mais cresceu ao longo destes três anos e meio, cerca de 40%. É suficiente? Não, acho que é possível e desejável ir mais longe, e o primeiro-ministro sente o mesmo, só que o esforço de investimento tem de abranger a saúde, a educação, a segurança social… Mas há áreas em que conseguimos retomar os níveis de 2009: no apoio às artes, por exemplo.

Com alguma dor do sector…
Sim, e neste caso nem foram dores de crescimento… Mas quando tomei posse assumi declaradamente dois objectivos: resolver os problemas prementes, de modo a pacificar as relações com as artes, o cinema, o património e os museus; e começar a preparar o futuro numa lógica de médio prazo. Há um bom exemplo que costumo dar de crescimento de investimento público com uma estratégia clara e duradoura, que é [a acção] do Mariano Gago na área da Ciência: fez-se um caminho definindo por que é que era importante mais investimento em Ciência, que impacto teria, qual devia ser o crescimento para Portugal se aproximar da média europeia. Na Cultura devíamos fazer o mesmo: não basta dizer que queremos 1% [do OE], eu até acho que podíamos dizer mais…

Já não seria mau, atendendo ao historial…
Mas por que é que temos de partir do menos mau? 

Porque ainda estamos nos 0,4%.
Certo, mas não é uma questão de números. Queremos 1% (ou 2% ou 3%…) do OE com que política? O que é que queremos conseguir nos próximos dez anos para o teatro, o património, o cinema? Como vamos alterar a relação das pessoas com a ida à sala de cinema, como conseguimos dar mais abrangência ou expressão territorial ao teatro? Também é preciso discutir política, não se pode discutir só o 1%. Eu percebo o ponto, é simbólico, mas gostaria de discutir numa base diferente: para onde é que vamos daqui a dez anos? Porque para lá chegar precisamos se calhar de mais do que 1%, mas há que identificar para quê.

Herdou um ministério seriamente descredibilizado pelos atrasos nos apoios às artes. Viu-se na posição de ter de salvar a face do Governo junto de um sector que teoricamente até seria favorável ao PS?
Senti-me na pele de ter de reconstruir uma relação que de facto estava fragilizada pelo atraso nos concursos, mas também pela forma como as estruturas experienciaram a mudança do modelo [de apoio às artes]. Quando chegámos, foi essa a prioridade – e havia várias coisas a fazer. Começámos por olhar para as estruturas que tinham ficado fora do concurso de 2018 e garantir-lhes apoio para um ano de transição, de forma a que conseguissem manter actividade e ir a este concurso bienal que acaba de abrir – trabalhámos com a Seiva Trupe, o Ensemble, a Karnart, a Barraca... Um segundo passo foi aceitar todas as propostas consensuais do grupo de trabalho [constituído para rever o modelo de apoio às artes]. Terceiro ponto, muito importante, um reforço de dois milhões de euros face ao concurso anterior, de 16 para 18,6 milhões de euros. Quarto, a simplificação dos formulários: ouvi muitas companhias dizerem que a plataforma era muito complicada, eu experimentei e percebi que não conseguiria preencher alguns daqueles campos. Finalmente, um aspecto fundamental: comprometemo-nos a pela primeira vez abrir [os concursos] no primeiro trimestre do ano, para dar regularidade, estabilidade e previsibilidade às companhias… Fui ver o histórico: o concurso para o último biénio, o de 2015/2016, abriu no dia 9 de Dezembro de 2014. Isto significa que quando as companhias souberam se eram ou não apoiadas já tinham decorrido pelo menos cinco meses do biénio que estava a ser apoiado. Não é possível a nenhuma estrutura, como não seria possível a nenhuma empresa, programar seja o que for nestas condições. Abrir [o concurso para o biénio 2020/2021] ainda durante o mês de Março exigiu um esforço enorme da Direcção-Geral das Artes (DGArtes), mas era um compromisso de honra. Se tudo correr como está previsto, a primeira resposta chega às companhias já no final de Julho. Até à data, não temos nenhum feedback negativo. E eu já aprendi em política que só quando as coisas começam a correr mal é que alguém diz alguma coisa. 

Depois da turbulência de há um ano, e do rodízio de directores-gerais dos últimos meses, a DGArtes está finalmente em condições de fazer o seu trabalho?
O que sinto, e isto é apenas empírico, mas o director-geral também o sente, é que conseguimos aos poucos ir reconectando com as estruturas e com os artistas. O orçamento global para as artes em 2019 é de 94 milhões, estamos a chegar a níveis pré-2010, e há um conjunto de factores que indiciam maior estabilidade e maior religação entre a tutela e o sector. Vamos ver como corre, mas digo mais uma vez: fala-se sempre de dinheiro, e o dinheiro é importante, mas há uma coisa que é quase tão importante quanto isso, que é conseguir estabelecer uma relação de confiança em que as pessoas sentem que são ouvidas, que têm algo a ver com o que está acontecer, que as coisas não se mudam só porque sim. Tentámos com cada companhia perceber o que aconteceu e qual a sua visão sobre o assunto; no cinema fizemos o mesmo, e faz toda a diferença.

Os artistas plásticos consideram-se abandonados pelo Estado, como argumentaram numa carta aberta ao primeiro-ministro, e defendem a criação de uma agência autónoma para as artes visuais. Essa possibilidade está em cima da mesa?
Nos últimos quatro meses chegámos a um entendimento e já temos um regulamento e uma comissão constituída por curadores, historiadores e artistas para o fundo de aquisições de 300 mil euros que o primeiro-ministro criou – vamos anunciar os nomes muito em breve. O passo seguinte é identificar outras medidas de política pública de apoio às artes plásticas. Alguns artistas defendem de facto a criação de uma agência; sou sincera, não tenho a certeza de que seja necessário. A preocupação que eu tenho partilhado com eles é a importância de haver uma gestão estratégica e integrada da Colecção do Estado. Se esse trabalho for feito, e estamos a começar esse caminho, não sei se é preciso criar uma agência. A gestão integrada é absolutamente decisiva, porque hoje temos um modelo muito heterogéneo: há a Colecção do Estado, a impropriamente chamada Colecção SEC, e colecções que não sendo do Estado estão hoje na sua esfera de gestão, caso da Colecção Novo Banco, que pelo segundo ano (refiro-me à parte de pintura) distribuímos por 15 museus. E há agora uma terceira componente, resultado de um desafio que lançámos sobretudo a bancos e instituições financeiras com colecções importantes: se em vez de terem as vossas colecções em gabinetes onde só entra o conselho de administração as quiserem ter em museus, ganham as colecções e ganham as pessoas. O primeiro acordo que alcançámos vai levar a colecção do Millennium BCP a três salas do Museu do Chiado; hoje [dia 3 de Abril] vai ser assinado com a COSEC um acordo segundo o qual 15 obras da sua colecção, incluindo uma Vieira da Silva e uma Menez extraordinárias, vão para outro museu.

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Também estamos a tentar corrigir desequilíbrios na rede de museus: em Lisboa, por exemplo, os museus necessitam de investimento de reabilitação e alargamento, porque não têm espaço suficiente para colocar tudo o que têm em acervo, enquanto há museus em diferentes partes do país que têm muito mais condições e acervos muito inferiores. Posso aproveitar para anunciar que vamos passar a ter uma parte do acervo do Museu do Chiado, um pólo descentralizado, no Museu Nadir Afonso, em Chaves.

Ainda quanto ao novo fundo: quando serão feitas as primeiras aquisições? As obras integrarão a Colecção do Estado?
Sim, sim, integrarão a Colecção do Estado para serem alvo dessa gestão flexível de que falava. Admitimos que no fim deste primeiro ano de funcionamento do fundo possa fazer sentido uma exposição só com as obras adquiridas neste período, mas o objectivo é que haja uma gestão conjunta. A área da gestão de património cultural móvel não é fácil, às vezes penso que era bom haver um curador-geral do Estado para fazer a curadoria dessa grande exposição que é a colecção nacional – a curadoria de um país, se quiser.

A Colecção do Estado começou a ser inventariada nesta legislatura, com o objectivo de se lhe dar um destino…
O destino, como lhe estou a dizer, deverá ser muito heterogéneo e multiterritorial. Aquilo que hoje está em caves do Museu do Chiado vai para Chaves, da mesma maneira que se decidiu que os Mirós iriam para o Porto, ou que as pinturas da Vieira da Silva ficariam, como era evidente, na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. A ideia é que a Colecção do Estado vá pelo país, que descentralize.

E a Colecção de Fotografia Contemporânea do Novo Banco? O Convento de São Francisco, em Coimbra, continua a ser a hipótese mais provável?
De facto chegou-se a pensar no Convento de São Francisco, o problema é que ele necessitaria de algumas obras de adaptação, desde logo porque a fotografia exige condições técnicas de conservação muito particulares. Não iremos arriscar colocar a colecção num local que não esteja tecnicamente preparado, e o Convento de São Francisco não está. Continuamos a analisar a possibilidade de Coimbra, noutro local.

Acredita que até ao final do mandato estará decidido o destino dessa colecção?
Estamos a fazer um esforço muito, muito grande para tentar ter três decisões importantes tomadas até ao final do mandato: o destino da Colecção de Fotografia Contemporânea do Novo Banco e a conclusão das questões da Colecção Ellipse e da Colecção BPN. Estamos a falar de colecções muito importantes, com um número elevado de obras de arte, e queremos que o processo seja concluído de forma estável e certa. 

Anunciou recentemente que uma das suas prioridades é corrigir as assimetrias de género na arte portuguesa. O Governo assumirá uma política de quotas nas colecções nacionais, nas aquisições, nas representações internacionais…?
Não, a ideia não é haver uma política de quotas, até porque estamos a falar de áreas com impulsos e dinâmicas próprias que não têm tutela directa do Estado. Mas há várias coisas que podemos fazer. Estamos a preparar um programa muito vocacionado para as mulheres – fundamentalmente nas artes plásticas, embora na literatura também exista um projecto em curso, mas aí parece-me que a sub-representação não é tão elevada. Não está em causa que Vieira da Silva, ou Paula Rego, ou Helena Almeida, ou Lourdes Castro sejam extraordinárias artistas, pelo contrário, mas a verdade é que demorou muitos anos a serem reconhecidas enquanto tal. O programa que estamos a construir (estamos a fazê-lo com outra instituição, por isso não quero ainda dizer como vai ser) terá três peças fundamentais: uma exposição que dará visibilidade conjunta a mulheres artistas desde 1900 até aos nossos dias, focando o modo como elas próprias se posicionaram ao longo dos anos; um módulo de conteúdos audiovisuais que possam chegar às pessoas com a história destas artistas; e um terceiro módulo de conteúdos para as escolas, através do Plano Nacional da Artes. Não se trata de dar a descobrir quem felizmente hoje em dia já todos descobriram; trata-se é de garantir que para as próximas gerações, para o futuro, esta sub-representação não se perpetua. Mas, para além da questão das mulheres, acho que há também necessidade de projectar os grandes artistas portugueses de forma mais veemente. Revisitei recentemente os painéis do Almada Negreiros nas gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, que em Guadalajara foram um extraordinário sucesso. Temos de voltar a olhar para aqueles painéis, provavelmente temos de voltar a intervir neles, e acima de tudo temos de reposicionar o percurso de um Almada Negreiros, ou de uma Sarah Afonso, com um orgulho nacional diferente. O estudo e a revitalização dos painéis é um dos projectos que vamos inscrever nos EEA Grants. Mas há tanto para fazer no enorme activo cultural que é Portugal – devíamos mesmo concentrar-nos na projecção internacional de Portugal através dos seus criadores, os que hoje felizmente continuam a criar e os de ontem.

Vários países europeus já deram início ao processo de restituição de obras de arte adquiridas ou apropriadas em contextos de dominação colonial. Ao que sabemos, Portugal não recebeu ainda nenhum pedido formal de devolução, mas o MC já está a trabalhar na definição de orientações gerais que regulem a resposta a dar a eventuais solicitações?
Não tivemos nenhum pedido. Se vier a existir, ver-se-á.

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