Um piquenique veloz: corridas de galgos podem estar na recta final

Campeonato nacional tem corridas aos fins-de-semana entre Fevereiro e Setembro. Após relatos de “treinos difíceis, abandono e condições indignas”, PAN quer proibir desporto amador. “Estão a pegar no que se passa nos outros países”, acusa quem nele participa.

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Uma "trela" de seis galgos compete numa pista em Nine, Famalicão. Tiago Lopes

A pista foi improvisada num descampado em frente à igreja de Nine, Famalicão. O resto do terreno continua irregular, mas, ao longo de 190 metros, Hélder Russo esforçou-se por deixar a terra lisa: não queria que nenhum dos 90 galgos inscritos na corrida se lesionasse ao pisá-la — os seus incluídos.

Começa cedo um domingo passado a duas velocidades. Ainda antes de o sino badalar as 10h, “os atletas”, como por aqui lhes chamam, começam a chegar em atrelados de onde só saem para correr e que anunciam a letras gordas o que trazem dentro — “galgos de desporto”. Mas se na pista o ritmo é vertiginoso, no meio de quem se junta a vê-los correr, o passo é o de um domingo de piquenique entre família e amigos.

Da mala das carrinhas saem guarda-sóis, mesas e cadeiras, farnel, arcas frigoríficas, fogareiros. No chão, dispõem-se taças com água e bacias com Betadine e água oxigenada, prontas para limpar as patas e as feridas de cães que podem atingir os 60 quilómetros por hora​, num sprint atrás de uma pele de lebre que nunca chegam a caçar. 

Os galgueiros descrevem os domingos de corrida como "um dia de convívio em família". Tiago Lopes
Uma "trela" de seis galgos compete numa pista em Nine, Famalicão. Tiago Lopes
Tiago Lopes
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Galgos à espera de correr. Tiago Lopes
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Hélder Oliveira diz que este é um desporto para onde pode "trazer a família". Tiago Lopes
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Um boletim de registo dos galgos numa das associações "galgueiras". Tiago Lopes
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Os galgueiros descrevem os domingos de corrida como "um dia de convívio em família". Tiago Lopes

A prova, prevista para ocupar o dia inteiro a quem tiver os cães mais velozes, está atrasada. Culpa da pequena fila que se forma junto à tenda das inscrições, supervisionada pela Associação de Galgueiros e Lebreiros do Norte. Para participar, os “galgueiros” (donos de galgos de corrida) devem provar “que os cães estão legais”, mostrando os certificados de registo de sócios nas associações e na junta de freguesia, bem como as vacinas em dias e pagar ainda dez euros por galgo. Por não ter todos os “documentos em ordem, houve quem já tivesse ido embora”, garante Hélder. 

Cala-se a música. “Peço a todos os proprietários que estejam atentos à chamada”, anuncia agora a voz do megafone, antes de começar a chamar cada “trela”, divididas em grupos de seis galgos e por classes: cachorros, adultos, importados (normalmente da Irlanda). Madonna; Mogly; Trovão; Dubai; Choné; Musazinha.

Hélder Russo desperta. Todos os cães do canil RussiForever têm nomes que terminam com os diminutivos inho ou inha. Todos eles também são ou foram galgos de competição. Os quatro que Hélder leva para as corridas aos domingos, as duas cadelas que já não correm e por isso ficam no canil ali perto e um cachorro que, em breve, vai começar a treinar. Para trazer sorte, ao pequeno (mas enérgico) galgo cinzento de olhos azuis chamou Coraçãozinho. Foi com o mesmo nome que baptizou o único campeão que, até agora, lhe passou pelas mãos, quando, em 2016, venceu o Campeonato do Norte, na categoria de cachorros. 

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Hélder Oliveira, galgueiro e organizador da corrida de Nine Tiago Lopes

“Depois, não correu nunca mais”, lamenta. “Lesionou-se. É desgaste nas articulações. Inchavam.” Ficou com o galgo até há dois meses, garante, altura em que o deu a “uma pessoa de confiança, para correr com os cavalos, no Gerês”. Este, lamenta Cristina Gonçalo, nem sempre é o caminho seguido pelos “galgueiros” quando já não “precisam de um cão”. 

Um cachorro no canil de Hélder Oliveira, em Famalicão. Teresa Pacheco Miranda
Teresa Pacheco Miranda
Teresa Pacheco Miranda
Teresa Pacheco Miranda
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Um cachorro no canil de Hélder Oliveira, em Famalicão. Teresa Pacheco Miranda

Por mês, Cristina dá para adopção uma média de dez galgos — “todos provenientes de corridas”, garante. Os sinais são quase sempre os mesmos: “na grande maioria chegam extremamente assustados”, “não se deixam apanhar (exceptuando quando já estão muito debilitados), têm “cicatrizes nos focinhos, por causa dos açaimes, e no pescoço, culpa do corte para extraírem chip”. Quando se lhes põe uma trela, “andam como soldados, não puxam, param quando paramos e sempre de focinho apontado para o chão”. Apresentam “uma parte muscular extremamente desenvolvida, principalmente a nível de peito e dos cortes traseiros” onde “normalmente não têm pêlo por causa dos treinos com noras metálicas”, um dispositivo que roda e obriga os cães a andarem ou correrem em círculos. 

Através da KateFriends, instituição que oficializou há nove anos para combater o abandono de galgos e promover a sua reabilitação e adopção, Cristina vê um lado do desporto que não corre na pista nos dias de competição. “Nós temos de encarar isto como um negócio. Se as corridas acabassem não havia necessidade de reproduzir os galgos desta forma absurda, só para ficarem com um ou dois e darem os outros.” Ainda esta semana foi buscar uma ninhada ao Alentejo. “A senhora que me ligou recolheu os galgos porque os ‘galgueiros' os iam matar.”

Água e betadine para limpar as patas e as feridas dos galgos, após a corrida. Tiago Lopes
Tiago Lopes
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Água e betadine para limpar as patas e as feridas dos galgos, após a corrida. Tiago Lopes

Chegam-lhe pedidos de ajuda para resgatar cachorros, mas principalmente cães reformados das corridas — isto, diz, acontece quando o animal “ainda é muito jovem” —​ e depois da procriação ou da doação de sangue, abandonados “porque não têm coragem de os matar e têm ali uma despesa que já não lhes dá rendimento”. 

É do Alentejo — Beja, Cuba, Elvas, Borba, Reguengos — que lhe chegam a maior parte dos alertas, tanto de “pessoas que encontram os animais debilitados nas ruas” como de associações, canis municipais ou até mesmo “galgueiros”. “Já há muitos ‘galgueiros’ que concordam comigo” e “desabafam sobre coisas que se passam lá e que os revoltam, que eles gostavam de mudar”, diz. “Mas não deixam de ser ‘galgueiros’.”

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Hélder Russo é “galgueiro” desde 2008. Desde aí já teve, conta rapidamente, “12 ou 13 galgos”; deu “três ou quatro” que já não serviam para competir. “Todos os cães que tenho, aproveito-me deles ao máximo. São bem tratados, bem alimentados. Só se houver uma lesão é que os passo para a parte da reprodução ou não correm mais.” Se os vê como animais de companhia? Mais do que aos outros dois “rafeiritos” que, em vez de dormirem num canil alugado, partilham com ele o sofá de casa, garante.”É um cão diferente, são muito meigos.” 

Ao todo, calcula, os seus galgos participam em 14 provas por ano, onde correm numa pista a direito atrás de uma pele de lebre puxada por uma máquina e cada vez menos atrás de lebres vivas. Algumas provas são fiscalizadas pela GNR e têm a presença de médicos veterinários; há outras que decorrem com apoios ou patrocínios de câmaras e juntas de freguesia. Neste caso, a “Câmara Municipal de Famalicão não apoia e não tem conhecimento” da realização da corrida, para a qual também não receberam um pedido de licenciamento. “As corridas e Galgos no nosso concelho não são uma tradição, excepto no contexto histórico da realização das Festas Antoninas”, respondeu uma fonte do gabinete de comunicação, ao P3.

Tiago Lopes
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Tiago Lopes

Desta corrida, augura, nenhum dos cães que trouxe vai sair com o prémio máximo de cem euros. A pontuação que ali fizerem conta para o campeonato anual disputado e organizado a nível nacional, com provas desde o final de Janeiro até ao final de Setembro​. Mas a previsão não lhe ensombra o domingo soalheiro. “Tenho-os porque gosto, pelo convívio. Isto é bonito. Passa-se um dia espectacular. Os animais adoram o que fazem, não são obrigados a nada. Eu pedia a Deus que nunca acabassem.”

Ri-se quando lhe perguntamos sobre os treinos. “Os treinos para mim são uma caminhada”. Conhece quem use ou tenha usado máquinas de auxílio aos treinos. É mais reticente quanto à dopagem dos animais: “Antigamente funcionava assim, porque as pessoas alimentavam os cães com restos e depois nas corridas... Agora já não. As pessoas hoje em dia optam antes por ter uma boa alimentação e bem vitaminados, só.” 

Em 2017, foram encontrados vestígios de benzoilecgonina, um metabólito primário da cocaína, na urina de Clonbrien Hero, o vencedor de uma das mais prestigiadas corridas de galgos irlandeses. Quando se citam casos como este, Hélder queixa-se de estarem a importar “o se passa nos outros países": “Eles vivem dos galgos lá. Há apostas, prémios monetários elevados. ​Nós aqui não, temos os galgos porque é um prazer. Eu não conseguia viver nesse meio.​ Abri-vos a porta ao meu canil. Aposto convosco que se forem a 30 ‘galgueiros' eles abrem-vos a porta também. Ninguém tem nada a esconder.”

Há cinco anos que organiza a corrida em Nine, uma das primeiras do ano. Se o projecto-lei do PAN – Pessoas-Animais-Natureza for aprovado, por organizar uma corrida, Hélder Russo poderia enfrentar desde uma multa a dois anos de prisão. A mesma pena seria aplicada a quem ajudasse na divulgação, vendesse bilhetes, disponibilizasse instalações ou prestasse auxílio material. Já quem se inscrevesse para participar, lê-se no documento, poderia arriscar uma pena de prisão até um ano.

O partido quer proibir as corridas de cães em Portugal. Alegam que o desporto federado encaixa no espectro das “actividades que perpetuam a exploração dos animais”, sujeitando-os “a treinos particularmente difíceis, ao abandono e a condições de vida indignas”. Lembram que a prática tem vindo a ser “abolida em vários países do mundo”, onde era até um desporto profissionalizado. E defendem que, por cá, também “não é isenta de contestação” e de “forte indignação social”.

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Por saber disto é que logo as primeiras palavras de Hélder foram de satisfação: “Ainda bem que vieram. Andava mesmo morto para que isto acontecesse.” E por saber disto é que o presidente da Associação de Galgueiros e Lebreiros do Norte — em Portugal, além da Federação Nacional de Galgueiros, sediada em Vila do Conde, existem ainda as associações do Norte (130 associados), Centro, Sul e de Cuba — decidiu estar presente na corrida, pronto “a receber os protestantes” que se manifestaram contra ela nas redes sociais. 

Tirando os galgos a ladrar nos atrelados, não se ouviram protestos.

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