Sobre a vontade de voar

Será que a vontade de voarmos, que só concretizamos em sonhos, vem da memória universal de sermos pegados ao colo?

Toda a gente — que eu saiba — sonha ou já sonhou que voa. E, em geral, toda a gente sonha que voa de uma forma parecida: um leve, quase impercetível, impulso com as pernas e — hop — auto-sustentamo-nos no ar. Por vezes subimos alguns metros, vemos as casas e as árvores do alto, e voltamos a descer como se perdêssemos aquele poder de levitar tão misteriosamente como o ganhámos. Isto é mais comum quando somos crianças. Dizemos ao adultos que voámos em sonhos. E os adultos dizem-nos — pelo menos os meus diziam — que o significado do sonho é “porque estás a crescer”.

Há um enigma à volta de onde vêm estes sonhos, e não pouca literatura sobre o assunto. É habitual começar a explicação pelo que parece mais evidente: que os humanos desde cedo olharam para os pássaros e os invejaram pela capacidade de voar. É costumeiro também citar a mitologia: Ícaro e o seu pai Dédalo que fizeram asas com penas coladas com cera e que ao aproximarem-se demasiado do sol deixaram que o calor derretesse essas asas. Mas os nossos sonhos não nasceram da mitologia; é mais provável que a mitologia tenha nascido dos sonhos. O que ajuda a explicar que culturas diferentes tenham mitos diferentes mas que todas tenham mitos relacionados com voar e que em todas as culturas e geografias os humanos sonhem que voam. Por outro lado, a vontade de voar daquela forma que só é possível em sonhos — um pequeno impulso quase impercetível com as pernas e, hop, lá vamos nós — precede em muitos milénios a realidade tecnológica do voo humano, em máquinas ou balões ou pára-quedas ou asas artificiais. Faz por isso sentido que ela esteja radicada numa experiência que toda a espécie humana tem, que seja partilhada por todas as culturas, e que ocorra numa fase tão inicial da vida que fique gravada na memória corporal antes de ser fixada na memória formal propriamente dita. Que experiência será essa?

A resposta, para mim, pode estar na experiência de ser pegado ao colo quando somos bebés ou crianças pequenas. Reparem no gesto que faz uma criança de cerca de um ano ou pouco mais — uma criança que já caminhe — ao pedir para que lhe peguem ao colo. Aproxima-se do pai, mãe, avó, avô, tio ou tia ou irmã ou irmão, estica-se para que peguem nele ou nela e depois habitua-se a dar aquele pequeno impulso quase impercetível com as pernas e, hop, é elevado de uma vez só ao dobro da sua altura. E é aí — nesse preciso momento — que o gesto de ser pegado ao colo é quase idêntico àquele que vamos repetir em sonhos e em que o nosso corpo se torna quase instantaneamente leve, bastando para isso esticar-nos. Será que a vontade de voarmos, que só concretizamos em sonhos, vem da memória universal de sermos pegados ao colo?

Se sim, isso significa que duas metáforas que ocupam lugares diametralmente opostos na nossa psicologia coletiva têm possivelmente uma raiz comum, o que fazendo um sentido à partida paradoxal ou mesmo contraditório, acaba por se revelar muito adequado. Aprender a voar é a metáfora da individualidade, do risco e da aventura. Ser pegado ao colo é a metáfora da proteção, da carência e da necessidade do outro. Como dizia, radicalmente opostos. Mas aquele momento, aquele instante de transição em que o peso do nosso corpo sai do solo e quase desaparece é praticamente igual nos nossos sonhos à realidade de nos pegarem ao colo quando somos bebés ou crianças. A possibilidade aqui seria esta: que depois de esquecida essa memória individual no cérebro ela acabasse por se traduzir numa sensação corporal de cuja realidade sentimos falta e na razão de ser do voo em sonhos que todos os humanos partilham.

É isto interessante? No sentido original do termo — que significava algo de proveitoso ou útil — provavelmente não. No sentido moderno do termo — que significa algo de subjetivamente curioso ou que meramente nos desperta a atenção — há tantas coisas que merecem o título de interessante que esta provavelmente também conta, mas isso pouco quer dizer.

É isto importante? A resposta é: para as páginas de um jornal nos dias que correm, quase certamente que não. Há guerras e crises, há gente em lugares de poder que mente e odeia com uma intensidade quase inacreditável, e se há um tipo que tem uma coluna num jornal, é para denunciar tudo isso que ele, o tipo, e ela, a crónica, devem servir em primeiro lugar.

Por outro lado, se considerarmos que tudo isso — as guerras e as crises e a mentira e o ódio tornado generalizado e supostamente aceitável — tem precisamente por efeito, e às vezes por objetivo, o manter-nos numa ansiedade permanente, então aí talvez o suspendermos o nosso peso e o das coisas à nossa constitua precisamente uma pequena resistência. Quem sabe? A intuição de que o “aprender a voar” e a experiência de ser pegado ao colo não sejam afinal contraditórias é só isso — uma intuição, impossível de provar — e serve para pouco mais do que comprovar que a explicação tradicional (“é porque estás a crescer”) talvez estivesse nesse caso certa. Se assim for, talvez o perder algum tempo com ela nos ajude a entender qualquer coisa sobre a nossa natureza simultaneamente individual e gregária.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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