Filipe, Catarina e o filho querem dar a volta ao mundo. E não será a hemodiálise que os vai impedir

Quando Filipe ficou a saber que teria de fazer hemodiálise dia sim, dia não, não desistiu, encarou-o como mais um desafio. “Queremos mostrar que é possível viajar com crianças, que é possível viajar com uma doença, que é possível largar o trabalho e seguir em busca de um sonho.”

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Nuno Ferreira Santos

“A palavra que mais usamos: descomplicar.” É sob o signo deste verbo que um casal acaba de iniciar uma volta ao mundo na companhia de um bebé com menos de dois anos e com a obrigatoriedade de incluir no roteiro tratamentos de hemodiálise a cada dois dias.

Catarina e Filipe Almeida, ambos com 30 anos, têm o “bichinho das viagens”. “Quando nos conhecemos, começámos logo a fazer pequenas viagens”, conta-nos Catarina, dando como exemplo Madrid e, mais longe, Cabo Verde. “A partir daí”, explica, “percebemos que é aquilo que nos deixa mesmo felizes e que é aquilo que mais gostamos de fazer.”

Para mais, a vida profissional de Filipe casava bem com as viagens: foi guia turístico e acabaria mesmo por abrir uma empresa de tuk tuks. Portanto, partirem para uma volta ao mundo a dois nunca foi uma ideia descabida. No entanto, a vida, como as viagens, dá muitas voltas. E a decisão do casal de partir em viagem chegaria envolta num turbilhão de acontecimentos e após uma quase sentença de deixar de viajar para sempre. É que Filipe tem, desde os 12 anos, o diagnóstico de nefropatia por IgA, uma doença renal que, no seu caso, acabou por resultar numa insuficiência renal crónica, determinando assim a dependência da hemodiálise, no seu caso, dia sim, dia não.

“No dia 19 de Abril de 2017, apenas dois meses depois de abrir a empresa e com a Catarina já no fim da gravidez, soube que tinha chegado à fase final da doença, por assim dizer”, recorda Filipe. Nesse instante, tudo pareceu desmoronar, mas, como o próprio diz, “foram dez dias de adaptação e dez dias para dar a volta”. É que, dez dias depois, Guilherme nasceu e o mundo voltou a virar-se do avesso. “E pensa-se: agora temos um bebé para cuidar” — e, muito depressa, a hemodiálise transforma-se em apenas mais uma rotina que precisa de ser encaixada no dia-a-dia. Por isso, e para continuar a trabalhar, Filipe optou pelos tratamentos durante a noite. “No início, ficar sozinha à noite com um bebé tão pequeno foi complicado; era como ser mãe solteira três noites por semana”, descreve Catarina.

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O nascimento de Guilherme resultou ainda noutra coisa: na cada vez maior vontade de partir mundo fora. “O que mais queríamos — e queremos — é ensinar o Guilherme, e as viagens são uma parte essencial das aprendizagens que lhe queremos passar”, diz Filipe. Catarina acrescenta: “Queremos mostrar o mundo ao Guilherme; mostrar-lhe que, independentemente do sítio onde estamos ou de como somos, física ou psicologicamente, todos somos pessoas, todos temos sonhos, objectivos.”

Porém, um bebé, diziam-lhes os amigos, seria um obstáculo a esse sonho de viajar. “Nunca percebemos por que razão as pessoas em Portugal deixam de viajar depois de terem filhos; nas nossas viagens, sempre vimos gente com os filhos atrás e decidimos que faríamos o mesmo, ao mesmo tempo que mostraríamos a outros que isto é possível: viajar em família.”

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Um jogo do Guilherme Nuno Ferreira Santos

A primeira viagem com Guilherme, a Praga, quando este tinha apenas oito meses, foi como que um teste ao qual todos, sobretudo o bem-disposto pequeno viajante, passaram com distinção. A partir daí foram desenhando viagens mais ambiciosas: primeiro à italiana Sicília, depois à Indonésia — sempre com a obrigatoriedade da hemodiálise, o que os leva a, por vezes, incluírem destinos com esse objectivo exclusivo (foi o caso da escala em Singapura, quando viajaram para a Indonésia, e será o caso da Arábia Saudita durante esta próxima aventura). E, depois do Sudeste asiático, tudo foi ficando mais claro: não seria fácil, mas era certamente possível.

O primeiro passo: decidir deixar tudo para trás. Catarina despediu-se do emprego que tinha há dez anos, desistindo de um percurso que lhe garantia estabilidade e progressão na carreira, mas com o qual não se sentia feliz; Filipe vendeu a empresa e os tuk tuks. Também a casa em que moravam foi vendida, assim como a totalidade do recheio da mesma, numa espécie de começar do zero que neste momento, explica Filipe, faz todo o sentido: “Este é o ano certo para fazer esta viagem: a hemodiálise está a funcionar e a doença está estável, ao mesmo tempo que o Guilherme, ainda longe da idade da escolaridade obrigatória, já começa a interagir com o mundo, a mostrar a sua personalidade, a ter interesse pelo outro.”

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A preparação da viagem foi morosa. Depois de tomada a decisão, há seis meses, iniciaram o processo: por um lado, construir um programa que fosse interessante para um bebé e que lhe permita ter os seus tempos, por outro, criar um roteiro com os tratamentos de hemodiálise garantidos. E se no caso da primeira tarefa a Internet foi uma grande ajuda, para a questão de saúde tudo se tornou mais complicado: “Pudemos contar com o apoio das pessoas na clínica onde realizo os tratamentos, mas não há propriamente um guia disponível”, lamenta Filipe, que espera, com esta experiência, criar um que ajude outras pessoas dependentes da hemodiálise a arriscarem a viagem.

“Na Europa é fácil, e os tratamentos são gratuitos para os cidadãos europeus; porém, há sítios onde é necessário contar com um orçamento avultado.” As contas para a viagem incluíam os tratamentos, mas acabaram por encontrar um apoio precioso para o seu projecto, o da Diaverum, um dos maiores prestadores de cuidados renais a nível mundial, não só nas suas clínicas, como nos restantes centros de tratamento, o que lhes permitiu encarar a aventura de uma forma mais desafogada. Afinal, só em tratamentos teriam de gastar em torno de 25 mil euros: há lugares em que uma sessão custa 70 euros, outros em que o valor ascende a 800 euros. Ainda assim, considera Filipe, o maior obstáculo para empreender uma viagem passa por não saber onde fazer o tratamento: “Há sempre quem tenha esses 800 euros para gastar e vontade de o fazer, mas simplesmente não viaja por não saber que é possível.”

E é aqui que a família pretende fazer a diferença. “Não queremos viajar só porque queremos dar a volta ao mundo. Queremos mostrar que é possível viajar com crianças, que é possível viajar com uma doença, que é possível largar o trabalho e seguir em busca de um sonho. E que a nossa vida é demasiado curta para não o fazermos.”

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