Marvin Gaye, um homem na encruzilhada

You’re the Man é o álbum que não chegou a ser. Planeado para suceder à obra-prima What’s Going On, foi vítima das inseguranças do seu autor. Chega agora, imperfeito e inacabado, mas iluminador.

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Rob Verhorst/Redferns/getty images

“Diziam-me que tinha atingido o topo e isso assustava-me porque, como dizia a minha mãe, ‘o primeiro a amadurecer é o primeiro a apodrecer’. Quando estás no topo, o único sítio por onde seguir é para baixo. Precisava de continuar a subir – elevando a minha consciência -, ou iria bater com as costas no chão”. Este era Marvin Gaye, em conversa com o seu biógrafo, David Ritz, a falar da ressaca de What’s Going On, álbum de 1971 que é uma obra-prima absoluta, qual sopro divino exortando por paz e Humanidade tendo como pano de fundo o Vietname e uma sociedade em tumulto. What’s Going On transformou-o numa das maiores estrelas do planeta e Marvin Gaye sentiu a nova condição como um fardo. “Quando terminará a guerra? Era isso que queria saber”, perguntava ele a David Ritz. Não a guerra no Extremo Oriente: “A guerra travada na minha alma”. You’re the Man, o álbum planeado para 1972 que não chegou a ser e que surge agora, quatro décadas depois, dá-nos a resposta em som e contexto. A guerra de Marvin Gaye foi árdua e total. Nunca terminou.

No passado dia 1 de Abril passaram 35 anos desde que Marvin Gay Sr., ferido no corpo pelos punhos do filho, que não tolerara a rispidez com que tratara a mãe, ferido no ego pelo insulto maior que sentira na agressão, irrompeu quarto dentro com um revólver e disparou uma vez – uma bala atravessou o coração de Marvin Gaye Jr. Aproximou-se do corpo caído no chão e a raiva fê-lo disparar uma segunda vez. Marvin Gaye morria um dia antes do seu 45º aniversário, morria pela arma que oferecera ao pai, na casa que comprara para ele e para a mãe.

Mudara-se para lá para tentar escapar de si mesmo. Para se libertar da cocaína que começara a consumir nos primeiros tempos da Motown, forma que encontrou para vencer uma timidez paralisante e brilhar em palco como a estrela que era. Para se proteger do mundo que conspirava contra si, assim o faziam acreditar os acessos paranóicos a que a toxicodependência o conduzira – passou toda a digressão de Midnight Love, o seu último álbum, o de Sexual Healing, a fugir de assassinos de imaginários. Fugiu para a casa onde estava o homem que amava e odiava em igual medida, o pai pastor cuja voz e intensidade dos sermões lhe deixaram marca indelével, o pai que lhe apresentara as mais belas melodias e os versos mais poderosos dos hinos gospel, o pai alcoólico que o espancou vezes sem conta desde a infância até ao momento em que, adolescente, saiu da casa lúgubre num dos bairros mais desfavorecidos de Washington para se fazer músico e cantor. Fugiu para casa dos pais para morrer, disse-o assim mesmo David Ritz - era a única forma de derrotar, por fim, os demónios que o atormentavam.

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Ferozmente independente, mas minado por tremenda insegurança; desejoso de reconhecimento, mas incapaz de lidar com a imagem que projectava enquanto estrela; consciente do seu talento, mas desconfiado dos elogio. You’re the Man ilustra bem as dicotomias que consumiam o seu autor DR

“No seu melhor, dizem os críticos, o senhor Gaye combinava a transparência da alma da música gospel, a doçura da soft-soul e da pop, e a musicalidade vocal de um cantor jazz”, lia-se no obituário do New York Times publicado a 2 de Abril de 1984. Citavam-lhe declarações recentes: “Não sinto que tenha que me conformar a quaisquer expectativas, mas gostaria que a minha música elevasse a consciência das pessoas, em vez de a diminuir, que lhes transmita esperança” . A elas, ou seja, aos outros, porque para ele, para Marvin Gaye, compositor e produtor de excepção, dono de uma voz capaz de tornar celestial o profano, capaz de ser profeta clamando por paz, agitador social convicto, intérprete de desejo carnal ou cavalheiro vestindo com elegância máxima as formas musicais impolutas da máquina Motown, sobrava sempre o tormento daquela questão: “Quando terminará a guerra?”.

Começa com o gemido wah-wah da guitarra, antes de a banda montrar o groove com baixo, bateria e percussão oleando o movimento, com os metais soprando subliminares em fundo, com a voz de Gaye multiplicando-se por quatro. “You’re the man”, canta ele em esgar desdenhoso. “Politics and hypocrites / Are turning us all into lunatics”, continua ele a cantar. “Don’t you understand, there’s misery in the land”, ouve-se repetido uma vez, e outra, e outra, o balanço do funk acentuado pelo scat sobreposto à pergunta acusadora.

You’re the man, single editado em 1972, foi pensado para ser a canção que anunciaria o sucessor de What’s Going On. “Passei três anos a compor, a produzir e a reflectir. A reflectir sobre a vida e, especialmente, sobre a América – porque é onde vivo – e as suas injustiças, os seus males e os seus bens”, dizia em 1971 à britânica Disc And Music Echo, reflectindo sobre a sua vida pós What’s Going On. O resultado seria algo como You’re the man, seria o que ouvimos depois dele na nova edição, numa canção de soul directa e actuante, com piano e metais em pontuação expressiva e orquestração dramática. The world is rated X é o título: “Take a look outside, I swear the truth is really told / It’s life in living color / fighting, killing, drug-dealing, it’s everywhere”, e vamos no início, “love is kneeling, rated X / hate is overweight, rated X”, e estamos quase no final.

Em 1968, quando o sucesso massivo de I heard it through the gravepine fez dele nome maior da Motown, Marvin Gaye sentiu que não era merecedor de tantos elogios e tanta adulação – a canção não fora composta por ele, não fora produzida por ele, e sentia-se por isso nada mais que um fantoche nas mãos de outros. Três anos depois, tudo mudaria. O regresso do irmão Frankie do Vietname, e os horrores que ali viveu, agudizaram-lhe a consciência social. Entretanto, Renaldo “Obie” Benson, dos Four Tops, entrega-lhe uma canção. Escreveu-a depois de ver em São Francisco polícias agredirem violentamente manifestantes anti-guerra. What’s going on é a canção e foi com ela que Gaye lutou pela sua liberdade criativa, num braço de ferro com o todo-poderoso patrão da Motown, Berry Gordy. A greve de Gaye à editora, recusando-se a gravar o que quer que fosse até que What’s going on fosse editado, vergou Gordy. Quando o disco escala tabelas de vendas e surge destacado no final de 1971 como álbum do ano, Gordy acede novamente, firmando um novo contrato milionário com o seu cantor.

Dois anos depois, assim nos diz a historiografia oficial, Marvin Gaye cimentaria definitivamente o seu estatuto lendário quando, em 1973, faz suceder a What’s Going On o escaldante Let’s Get It On, inultrapassável ode ao sexo e ao desejo - em conjunto formam um díptico perfeito, da plenitude espiritual ambicionada ao prazer profano divinamente vivido. Entre um e outro, porém, deveria estar You’re the Man, e é essa história que conta a edição que agora nos chega.

O activismo e o romance

“Não tenho quaisquer planos. Nunca planeio nada. Nunca o fiz e nunca o farei”, afirmava na supracitada entrevista inglesa de 1971. Só deixava uma garantia, nunca mais trabalharia com uma cantora – eram ainda as marcas deixadas por Tami Terrel, a cantora com quem protagonizou duetos como Ain’t no mountain high enough e que colapsaria nos seus braços durante um concerto, primeiro sinal do tumor cerebral que a vitimaria em 1970. E, no entanto, no mesmo ano da entrevista, começou a trabalhar com Diana Ross em Diana & Marvin, o mal-amado álbum editado em 1973. Marvin Gaye: ferozmente independente, mas minado por uma tremenda insegurança; desejoso de reconhecimento, mas incapaz de lidar com a imagem que projectava enquanto estrela; perfeitamente consciente do seu talento, mas desconfiado dos elogios que, por ele, lhe dirigiam. You’re the Man, ouvido quatro décadas depois no mais próximo daquilo que teria sido o plano original, ilustra bem as dicotomias que consumiam o seu autor.

As 17 canções que compõem a edição, agora distribuída em vinil e nas plataformas de streaming, estando marcado para mais tarde o lançamento em CD, não são inéditas. Foram sendo editadas ao longo dos anos em colectâneas ou como extras de reedições (porém, não existiam até hoje no formato vinil). A principal e reveladora novidade é ouvi-las reunidas como conjunto, formando as primeiras oito canções aquilo que se pode imaginar como o alinhamento oficial do álbum perdido, e as restantes como peças acompanhantes do processo. Foram gravadas em 1972 entre Detroit, cidade onde foi fundada a Motown, e Los Angeles, a cidade para onde Berry Gordy transferiu posteriormente a editora.

You’re the man, o single, poderoso ataque à América de Nixon e comentário sardónico às eleições presidenciais desse ano, seria portanto o anúncio do novo álbum. Acontece que a recepção inicial não replicou o sucesso de What’s Going On, que Berry Gordy, receoso que o tom activista fosse prejudicial à imagem da Motown, limitou a promoção do single (ou tê-lo-á mesmo boicotado activamente), e que, consequência disso, Marvin Gaye duvidou. Dedicou-se então à composição de Trouble Man, celebrada banda-sonora do filme blaxploitation que o alinhou com o Curtis Mayfield de Superfly ou com o Isaac Hayes de Shaft, e iniciou as gravações com Diana Ross. Nos intervalos, porém, continuou a sua procura, chamando até si o produtor e compositor Willie Hutch, que assinaria mais tarde a banda-sonora de Foxy Brown, Hal Davis, histórico produtor da Motown, onde acompanhou de perto a ascensão dos Jackson 5, por exemplo, ou recorrendo a compositoras como Pam Sawyer e Gloria Jones (a voz em 1965 do Tainted Love original, futura mulher de Marc Bolan).

Marvin Gaye na encruzilhada, assim nos aparece em You’re the Man. De um lado, o activista do tema título e de The world is rated X, a tocante voz gospel de Piece of clay procurando reconciliação, o cantor de canções de Natal que põem o dedo na ferida em vez de alimentar falsas ilusões da quadra (I want to come for Christmas é cantada na perspectiva de um soldado que só quer escapar à loucura da guerra, Christmas in the city é um instrumental fantasmagórico movido a Moog onde uma desolada solidão se sobrepõe à ideia de fraternidade). Do outro lado, o cantor do amor e da paixão a tomar as rédeas e, entre abordagens mais conservadoras (Try it, you’ll like it, You are the special one), a prenunciar Let’s get it on na balada I’d give my love for you ou nessa Woman of the world dedicada à “liberated lady of today”. A fechar a colecção, o funk cru e insinuante da óptima Checking out (double dutch).

Inacabado, obrigatoriamente imperfeito, You’re the Man, não é peça unificada, correspondendo a uma visão precisa, como o são What’s Going On ou Let’s Get it On. Mas, apesar disso, é o retrato fascinante de um génio musical tacteando caminhos, acertando e falhando, convicto num momento, acossado pela dúvida no outro. Conquistara recentemente a tão desejada independência artística e isso não fora libertador, como julgara. Ganhara o reconhecimento geral como cantor, produtor e compositor, exactamente como ambicionava, mas isso não eliminara a tremenda insegurança que sentia.

A penúltima canção de You’re the Man é I’m going home, pedaço de soul com guitarra blues lamacenta e a iluminação do piano eléctrico a guiar o caminho. “I’m going home / to see my mother / I’m going home / kiss my dear old dad”, canta. “I’m going home / where somebody loves me”, continua.

Marvin Gaye queria elevar consciências, ensinar-nos a amar, irradiar luz sobre toda a escuridão. Disse certo dia que What’s Going On foi criação divina e que ele funcionou apenas como veículo de Deus.  Digamos então que Marvin Gaye queria salvar-nos a todos. A ele, cabia-lhe tentar adiar ao máximo o que sentia óbvio. Estava condenado. Ninguém o salvaria de si mesmo.

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