Quem faz mal a um animal também pode fazer mal a uma pessoa?

Os maus tratos contra animais são muitas vezes a “ponta do icebergue”: os animais, além de serem vítimas de violência, servem para manipular, intimidar e agredir as vítimas humanas emocionalmente, impedindo-as até de sair de casa.

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Paulo Pimenta

Passaram mais de quatro anos desde que os crimes contra animais de companhia passaram a estar previstos no Código Penal português. Porém, pouco se tem falado da sua relação com outros fenómenos de violência. A forma como os animais são tratados no seio de uma família é fundamental para interpretar as relações entre as pessoas que a constituem e a sua dinâmica familiar.

Vários estudos internacionais têm vindo a demonstrar uma relação directa entre a violência contra animais e outros tipos de violência, sendo crescente o reconhecimento de que a violência doméstica, o abuso infantil, a violência contra pessoas idosas e contra animais ocorrem frequentemente nos mesmos lares.

Ou seja, os maus tratos contra animais são muitas vezes a “ponta do icebergue”: os animais, além de serem vítimas de violência, servem para manipular, intimidar e agredir as vítimas humanas emocionalmente, impedindo-as até de sair de casa (desde logo pela falta de respostas que permitam que as vítimas saiam acompanhadas dos seus animais). Diz um estudo da National Link Coalition on Violence Against Animals que 15% a 48% das mulheres adiam a saída de uma situação de abuso com receio pela segurança dos seus animais de companhia.

Também o impacto emocional sobre as crianças que possam ter testemunhado actos de violência contra os animais que integram a sua família pode ser devastador e ter consequências no desenvolvimento da sua personalidade, como não será difícil imaginar.

Mas a correlação da violência vai mais longe, não se circunscrevendo aos crimes de violência doméstica, mas abarcando, também, crimes em série, que se iniciam muitas vezes com crimes contra animais.

Nos Estados Unidos, desde 2016 que o FBI alterou a categorização dos crimes contra animais e passaram a registá-los na base de dados criminal (NIBRS), a par dos crimes violentos e tipificados como “crimes contra a sociedade”, como os homicídios. Desta forma, seria mais fácil identificar os factores de risco e actuar na prevenção da violência. Este registo permite revelar uma imagem mais completa da natureza da crueldade para com os animais e a sua relação com a escalada de violência contra pessoas, sensibilizando a população para esta correlação.

Como demonstram diferentes estudos de sociólogos, psicólogos e criminologistas nos últimos 25 anos, os agressores em casos de crueldade animal frequentemente não ficam por aí e passam a cometer actos de violência contra humanos. Um estudo realizado em 1997 pela Northeastern University e Massachusetts SPCA demonstrou que quase 40% dos abusadores de animais cometeu crimes violentos contra pessoas.

Em Portugal, apesar dos crimes contra animais constarem já do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), não existe ainda uma análise integrada destes crimes com outras realidades criminais, em particular com a violência doméstica, que tem aumentado dramaticamente no nosso país. O que é lamentável se relembrarmos que, de acordo com o relatório elaborado pela Direcção-Geral da Saúde sobre Violência Interpessoal, Abordagem, Diagnóstico e Intervenção nos Serviços de Saúde, datado de 2014, a crueldade contra animais é já identificada como um potencial factor de risco.

Em causa estão precisamente comportamentos como maus tratos aos animais de companhia da vítima ou ameaças à vítima, às suas crianças ou aos seus animais, uma associação de comportamento denominada “roda do poder e do controlo” que tem o intuito de intimidar, manipular ou coagir a vítima.

Ao ser identificada uma situação de maus tratos a animais, os diferentes profissionais que são chamados a actuar nestes casos devem estar aptos a, além de salvaguardar o bem-estar do animal, poderem reconhecer os sinais de risco e de conexão deste tipo de violência para que possam adequar procedimentos e travar o ciclo de violência. Ou seja, além do respeito que a vida animal nos merece, podemos estar até perante uma situação mais complexa em que também as pessoas daquele contexto familiar estão em risco.

É essencial não só a adequação da legislação, que tem necessariamente de ser revisitada, mas também formar os diferentes profissionais que vão intervir para que estes possam estar preparados para reconhecer os diferentes tipos de violência, incluindo a violência contra animais, e conhecer os procedimentos juridicamente adequados para cada caso, travando o mais cedo possível o ciclo de violência.

Porém, para que tudo isto aconteça, é necessária a tão falada mudança de mentalidades: a violência contra animais deve ser reconhecida como parte integrante da violência contra pessoas, em particular no contexto familiar. E só reconhecendo o vínculo afectivo existente entre as vítimas humanas e não humanas, assim como a relação entre a violência contra pessoas e contra animais, poderemos ter um ponto de partida para uma efectiva prevenção destes crimes.

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