Havemos de ir a Viana (piquenicar, outra vez)

Viana do Castelo recebe domingo o piquenique musical da MPAGDP. Em 1985 esteve lá o Piquenicão.

Pedro Homem de Mello escreveu, e Amália cantou, um poema onde dizia: “Se o meu sangue não me engana/ Como engana a fantasia/ Havemos de ir a Viana/ Ó meu amor de algum dia.” Mas a que propósito vem agora a minhota Viana do Castelo, palco de festas e romarias e alvo turístico antigo, descrita no Guia de Portugal de Raul Proença (1884-1941) como “formosa capital do Alto Minho (…), encantadora pela suavidade das suas alongadas linhas e profunda sensação de brandura que irradia do seu casario irizado pela vizinhança do rio e do mar”?

A propósito de um piquenique. Não um piquenique qualquer, mas sim uma confraternização convocada para o próximo domingo, dia 7 de Abril, pela Música Portuguesa A Gostar Dela Própria (MPAGDP). Fizeram o primeiro em Janeiro de 2018, em Monforte da Beira e, ao que dizem, correu bem. “A ideia era muito simples: escolher um local fora dos grandes centros urbanos, convidar as pessoas a deslocarem-se até lá, trazendo cada uma o seu farnel, e o seu instrumento musical, e partilhar as duas coisas, a música e a comida.” O resultado, afirmam, “foi excelente. Numa aldeia de 300 habitantes, de repente estavam mais de 800 pessoas todas juntas, a cantar, a dançar, a tocar, a partilhar, a escutar. A experiência foi de tal forma intensa, que um ano depois, ainda se partilham fotografias e memórias do piquenique.” Por isso, ala para Viana! Vão juntar-se domingo no Parque da Cidade, “a partir das 11 horas”, e apelam a quem queira que se lhes junte. Num piquenique que, dizem, “acaba por ser uma reprodução dos momentos de convívio que eram tão habituais na vida das pessoas há 40/50 anos atrás.”

Ou até há menos. Curiosamente, mais de três décadas antes da MPAGDP de Tiago Pereira avançar para Viana com o seu projecto galvanizador da música de tradição oral (o que vai fazendo na Net, Antena 1, Antena 2, RTP Memória ou desde 2012 no festival Bons Sons), um outro piquenique também com pretexto musical rumou a Viana, em 1985, levando à capital minhota 64 ranchos folclóricos e 50 a 60 mil pessoas em quase mil autocarros de excursão. Era para se chamar festival, mas ganhou o nome de Piquenicão (e o epíteto, no Expresso, de “Woodstock saloio”). Tal como o actual, também teve uma primeira edição experimental, em Tomar. E essa, em 1984, atraiu 52 ranchos e mais de 30 mil pessoas. A segunda foi Viana, já com maior ambição, mais ranchos e mais gente. Tal como agora sucede com o anunciado piquenique da Música Portuguesa A Gostar Dela Própria, embora com as devidas diferenças.

Quem organizou o Piquenicão foi o programa radiofónico Diário Rural, do antigo Rádio Clube Português (hoje também há um Diário Rural, mas é um jornal online). Ora o antigo Diário Rural, que durou 29 anos (1964-1993) era um programa “dedicado exclusivamente aos agricultores”, como se recorda no blogue Telefonia Sem Fios, e tinha, à data da ida para Viana, uma equipa formada pelo seu criador, António Costa Macedo (nascido em Tomar), a sua ajudante Mila e o “Senhor Messias”, um camponês imaginário natural de “Quadrazais”, criado e interpretado pelo técnico do RCP Armando Grilo, que era natural de Castelo Branco.

Pois o spot radiofónico que anunciava o Piquenicão para 30 de Junho de 1985 chamava-lhe “a maior manifestação cultural e de convívio jamais realizada no nosso país”, associando-lhe um toque picaresco. “Então, senhor Messias?”, perguntava o anunciante. Resposta, rápida: “Péra aí, pá!” E lá vinham os sons da cortiça a roçar o gargalo do garrafão e do vinho a escorrer para os copos. “Lá num bai haber xede”, garantia-se. Assim mesmo, forçando uma pronúncia livre dos ditames da capital. Com “morxelas” e “binho berde” para o “miradoiro de Xanta Lugia.”   

Tudo teatro, naturalmente. “A fala dele não é como no programa!”, admirava-se uma senhora entre a multidão, ao ouvir um “senhor Messias” mais janota, sem ares campónios, sem cajado e sem falar “axim”, naquela já longínqua tarde de domingo de 1985. O que não faz a rádio…

Costa Macedo viveria apenas mais três anos (morreu em 1988), sendo substituído por Carlos Rebelo. O “Senhor Messias”, esse, manteve-se ali firme até o programa acabar, em 1993.

Entre estes dois piqueniques musicais, o de 1985 e o de 2019, apesar das diferenças temporais e de conceito, há coisas em comum: a escolha de Viana para segunda edição de ambos; o apelo à confraternização; e a música de raiz como fonte, no primeiro caso mais instituída em ranchos folclóricos, no segundo alimentada pela transmissão oral. O mais que se pode desejar é que este novo piquenique de Viana seja um “piquenicão” – de bons sons e fraternidades.

P.S.: Se, embora melómanos, preferirem o cinema, há em sala dois documentários a não perder: Fevereiros, de Marcio Debellian, que tem como protagonista Maria Bethânia, na ligação sincrética entre as celebrações religiosas do recôncavo baiano e o carnaval carioca; e Piazzolla – Os Anos do Tubarão, de Daniel Rosenfeld, que se estreia precisamente no próximo domingo (no Cinema Medeia Monumental, às 19h) e que percorre a vida do lendário bandoneonista argentino através de depoimentos, actuações e imagens inéditas vindas dos arquivos de Astor Piazzolla e descobertas pelo seu filho (também músico) Daniel.

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