Sergei Dvortsevoy trabalha com a vida

O passado de documentarista diz ao realizador Sergei Dvortsevoy que sendo a vida imprevisível, mesmo a câmara de uma ficção pode apenas pretender descobrir. Por exemplo, em Ayka, a obstinação de uma personagem no submundo escuro e gelado de Moscovo.

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Quando era um jovem engenheiro aeronáutico da Aeroflot, Sergei Dvortsevoy voava por cima dos vastos espaços selvagens da ex-URSS.

“A aviação é uma coisa técnica – o que é que se pode dizer sobre isso? Não é algo muito interessante”, admite o realizador cazaque, de 56 anos, descendente de antepassados russos que se instalaram no Cazaquistão há 100 anos. “Eu queria aventuras. Para se fazer filmes tem que se ser aventureiro.”

Após estudar cinema e realização em Moscovo no início da década de 1990, iniciou a sua carreira com dois documentários acerca de pastores cazaques. Quando mudou para a ficção, manteve o seu compromisso com os filmes de observação e com a narração de histórias de pessoas que tentam sobreviver numa Rússia em contínua transformação.

Em 2008, para Tulpan, a sua estreia em longa-metragem de ficção situada no Cazaquistão, baseou-se nas suas experiências no campo da aviação e do documentário, contando a história rural de pastores nómadas que vivem em iurtes (tendas circulares fechadas). O filme, que inclui uma cena de 10 minutos de uma ovelha a dar à luz, acabou por receber muitos prémios, incluindo o de Melhor Filme na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes. O seu filme seguinte, Ayka, o drama de uma emigrante em Moscovo, valeu a Samal Yeslyamova, que interpretou a irmã do protagonista em Tulpan, o prémio de Melhor Actriz em Cannes.

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Sergei Dvortsevoy queria uma câmara que fosse testemunha do que acontece à sua protagonista John Phillips/Getty Images

 Se bem que Dvortsevoy tenha escolhido de novo um protagonista proveniente de uma pequena antiga república soviética – o Quirziguistão –, trata-se aqui de uma história urbana, acerca da luta de uma jovem para sobreviver na saturada metrópole, dois dias após ter dado à luz. Mas isso não significa que tenha sido mais fácil filmar desta vez. Tulpan foi filmado numa zona remota do Sul do Cazaquistão, a 500 quilómetros da cidade mais próxima, mas desde então as estruturas de financiamento alteraram-se de tal forma que Dvortsevoy sentiu mais dificuldades para fazer Ayka, num processo de acabou por demorar mais de seis anos. Aliás, Dvortsevoy já falava acerca de fazer este filme há oito anos.

A sombria perspectiva de emigrantes ilegais, como Ayka, que vivem na pobreza extrema e são vítimas de implacáveis empregadores moscovitas, não era algo que os organismos patrocinadores russos apreciassem, com o Campeonato do Mundo de Futebol a colocar o país sob os olhares globais no ano passado. O ministro da Cultura, Vladimir Medinsky, declarou que só queria filmes positivos acerca do país.

“Começámos antes da chegada de Medinsky, mas é claro que não foi fácil, é preciso paciência neste processo”, conta Dvortsevoy. “Não tenho a certeza de que agora nos permitissem fazer este tipo de filme. O ministério apoiou-me, obviamente, é boa gente e deixaram-me filmar durante mais tempo do que é habitual. Mas, de acordo com o sistema, não importa que filme se faz, desde que seja terminado em dois ou três anos. Não é por razões políticas. Depois de três anos tive que pagar uma grande multa. Há regras a seguir. Não se importam com as dificuldades que enfrentamos, não se importam com a qualidade. Quer se trate de um bom filme ou de um mau filme, um filme sério ou de entretenimento, temos é que o fazer em dois anos.”

Mesmo assim, é difícil imaginar que Medinsky tenha ficado agradado com a descrição que Dvortsevoy faz de uma Moscovo suja e sombria. Dvortsevoy admite que não é um local particularmente acolhedor.

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A luta de uma jovem para sobreviver numa Moscovo suja e sombria, dois dias após ter dado à luz: Samal Yeslyamova, prémio de interpretação em Cannes

“Moscovo é uma megalópolis, uma cidade muito grande e muitas vezes as pessoas não querem comunicar. No metropolitano, quando vemos as caras sombrias e fechadas é como se as pessoas estivessem a dizer ‘Não me incomodem, deixem-me em paz’. A vida em Moscovo é assim. As pessoas não se sentem à vontade. Têm medo do terrorismo, têm medo dos recém-chegados, e não se importam com os nossos problemas. Querem mostrar que nada os pode afectar, que são fortes. Lutam por isso.” 

“Em Moscovo, segundo os dados oficiais, há 13 milhões de pessoas, mas na realidade serão cerca de 20 milhões, o que significa que 7 milhões são emigrantes ilegais. As pessoas dizem que eles nos roubam os empregos mas o que acontece é que as pessoas não querem esses trabalhos duros, a limpeza da cidade, porque é muito esforço para pouco dinheiro.»

Dvortsevoy queria mais especificamente falar sobre o facto de em 2010 terem sido abandonados 280 bebés em Moscovo. Queria contar a história de uma dessas mulheres que tentam sobreviver vivendo nas ruas. 

O incisivo realismo que adoptou, através de uma câmara nervosa e uma montagem agitada, permite-nos penetrar nas dificuldades que os emigrantes suportam, nos cinco dias após Ayka ter abandonado o seu bebé recém-nascido na maternidade, ciente de que ele ficará melhor lá do que nas ruas cobertas de neve. Está ansiosa para regressar ao trabalho, e assim poder pagar uma dívida. Enquanto lida com as ameaçadoras bestas que emprestam dinheiro e senhorios, sofre uma hemorragia pós-parto e mastites nos seus seios dolorosamente cheios de leite.  

Dvortsevoy escreveu o argumento para Yeslyamova, a única actriz profissional num papel principal (embora três outros surjam em papéis secundários). Inicialmente ela queria ser jornalista, mas após o sucesso de Tulpan apanhou o bichinho da representação. “Estudei na melhor escola de teatro de Moscovo”, explica a actriz de 34 anos. “Fiz duas peças mas depois este filme consumiu todo o meu tempo e a minha energia.” 

Foi difícil interpretar este papel ao longo de tantos anos? “Eu queria assegurar-me que o filme iria ser um sucesso e queria que a história ficasse exactamente como a tínhamos imaginado. Estivemos sempre muito motivados para alcançar esse objectivo em todas as cenas e isso demorou muito tempo. Gradualmente fui-me esquecendo que a câmara estava ali.”

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Enquanto se arrastava pela neve, conseguia ela imaginar que poderia ganhar um prémio em Cannes e assim tornar-se na primeira actriz cazaque a alcançar esse feito? “Para mim o objectivo não era ganhar um prémio. Mas é claro que foi muito difícil preparar-me, e durante as filmagens ficava cansada e muito suada por ter de andar a correr.”

Dvortsevoy: “Eu conhecia a Samal muito bem, e sabia logo desde o início que apenas ela conseguiria desempenhar este papel. É difícil para actores profissionais trabalhar nos meus filmes, pois quando estão a realmente a começar a esclarecer alguma coisa, já acabou. Não é possível utilizar apenas as capacidades dos actores para retratar alguém. Existe uma quantidade de coisas muito naturais com que se tem de lidar.”   

“Ao princípio tínhamos um guião muito bem definido mas, devido à minha estranha maneira de ser enquanto realizador, não me cingi a ele. Apenas 10 por cento ou 20 por cento do guião original se manteve. Quero trabalhar com a vida, adaptar algo e ver o que acontece a seguir. Não quero saber tudo, quero descobrir. Talvez isto se deva ao meu passado a fazer documentários, mas a vida é imprevisível e nunca sabemos o que está ao virar da esquina. Nunca penso nalgum estilo particular, o meu estilo ou o estilo dos irmãos Dardenne, com quem os críticos muitas vezes comparam. Neste caso eu precisava de uma câmara que acompanhasse a Ayka, pois queria que fosse uma testemunha, mas não porque eu percebesse o que ia acontecer a seguir.”   

No fim de contas, muito do que vemos no ecrã é real.

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