“A ciência europeia precisa de um sistema mais eficiente para inovação”

Jean-Pierre Bourguignon é o presidente do Conselho Europeu de Investigação e está em Portugal até dia 9 de Abril para participar numa série de acções sobre a ciência que se faz e financia na Europa.

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Miguel Manso

O matemático francês é, desde 2014, o presidente da agência que tem como principal objectivo financiar a ciência que se faz na Europa e que se chama Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês). Desde da sua criação, em 2007, Portugal já recebeu 91 bolsas ERC, ou seja, um apoio que vale 150 milhões de euros. Esta quinta-feira (e nos próximos dias) o presidente do ERC, Jean-Pierre Bourguignon, está em Portugal a participar em várias iniciativas, entre as quais estão as jornadas que vão apresentar e promover a rede “PERIN - Portugal in Europe Research and Innovation Network”. A poucas horas de embarcar para Portugal, falou com o PÚBLICO. 

Antes de começar a falar, Jean-Pierre Bourguignon pede uns segundos para vestir o casaco. Vai sair para a rua e a conversa vai decorrer durante uma viagem de alguns minutos enquanto caminha. Descontraído, revela muito do que parece ser um genuíno entusiasmo com o trabalho que faz há seis anos como presidente do ERC. Jean-Pierre Bourguignon fala dos milhões de euros investidos em investigação e inovação, do perigo das velhas fake news difundidas nas novas redes sociais, das forças e fraquezas da ciência europeia, das mulheres na ciência, do impulso aos jovens cientistas, e muito mais. No fim, desejamos uma boa viagem ao presidente da ERC que nos responde sem hesitar: “Será, seguramente. Portugal é o meu país preferido”. Sem saber bem porquê, desconfiamos que não é uma declaração por mera simpatia.

Após seis anos à frente do ERC, os seus objectivos são os mesmos ou mudaram?  
O ERC está no seu 12.º ano de existência. Eu assumi a presidência em 2014, estou no meu sexto ano, como diz. Fui um dos avaliadores do ERC no seu início, estava à frente do painel de Matemática que foi criado em 2007. Posso dizer que, sem qualquer dúvida, os objectivos não mudaram. Uma das coisas que é verdadeiramente notável é que em três quadros comunitários consecutivos — de 2007 a 2013, o Horizonte 2020 de 2014 a 2020 e o que vem aí do Horizonte Europa  — a estrutura e governo do ERC não mudou nada. O facto de isto ter acontecido, como o conselho científico do ERC sempre quis, mostra que a estrutura e o impacto que o ERC teve e tem eram suficientemente bons, Assim, não havia necessidade de fazer as coisas de um modo diferente.

Mas alguma coisa mudou nos últimos anos no campo da investigação, na inovação, na mentalidade, nas novas gerações, nas mulheres na ciência… ou não?
Sim, mas a forma como nos organizamos é dando a total iniciativa aos investigadores. Em nenhum momento decidimos o que as pessoas devem fazer. Está completamente do lado dos investigadores. E isso significa que a renovação de ideias e a regeneração de problemas vem de uma forma natural. É evidente que se compararmos o apoio que damos a alguns projectos agora com o que demos vários anos antes, é bastante diferente. Mas estamos só a responder ao que nos é submetido pelos investigadores. Eles é que marcam o tom. A questão das mulheres é muito importante. Acho que temos feito um progresso constante.

De que forma? 
Inicialmente, era uma dificuldade que estava identificada se se olhássemos para a percentagem das mulheres na comunidade científica e a percentagem de mulheres que se candidatavam havia uma discrepância. Ou seja, as mulheres apresentavam menos propostas do que os homens.

Porquê? 
Talvez porque as mulheres são mais discretas e tendem a subestimar o seu desempenho. Por causa disso e porque o ERC é considerado um programa muito desafiante elas não se candidatam tanto como os homens. Mas isso já não acontece agora. Estamos numa situação em que se olharmos para a percentagem de mulheres a candidatar-se ao ERC é bastante similar à percentagem de mulheres do mesmo grupo etário que temos na comunidade. O handicap que tínhamos acabou.

Agora temos um reflexo do que se passa nos bastidores, nos laboratórios 
Sim, mas não acho que o ERC deva ficar com todo o mérito disso. Há de facto uma nova mentalidade que existe nos laboratórios e em vários ambientes e que faz com que o problema seja menos significativo actualmente. Há outra coisa: antes as mulheres eram muito críticas sobre o facto da sua taxa de sucesso [apresentação vs aprovação de propostas] ser mais baixa do que a dos homens. E agora, de forma consistente, pelo terceiro ano consecutivo, esse não é o caso. A média do sucesso das mulheres é ligeiramente superior à dos homens. Fizemos algum esforço para que isso acontecesse. Por um lado, chamamos a atenção para o problema e, por outro, em dois dos nossos principais concursos permitimos que as mulheres que tivessem filhos (bastava que apresentassem a certidão de nascimento) tivessem um extensão do apoio de 18 meses por criança. E isto, entre outras medidas, foi muito eficiente. Tentamos eliminar os eventuais bias que podem existir. Mas é algo que temos de ter sempre em atenção porque mesmo que se faça algum progresso há sempre o risco de regredir. E, a propósito, deve saber que em Portugal é um dos países onde as mulheres têm mais sucesso. Não só em quantidade mas em qualidade.

Já que fala em números, se olharmos, por exemplo, para o ultimo concurso de bolsas concedidas pelo ERC (as Advanced Grants) vemos que é o Reino Unido que arrecada mais projectos financiados do que qualquer outro país da EU. Neste caso, são 47 para o Reino Unido e Portugal teve apenas dois. Como vê a parceria com o Reino Unido na ciência, com ou sem “Brexit"? 
Ninguém sabe. É claro que todos os cientistas, incluindo os que estão a trabalhar no Reino Unido, esperam que, mesmo que o Reino Unido saia da EU, todos se mantenham associados. Mas o que é que vai acontecer? Ninguém sabe. Se soubéssemos o contexto do “Brexit” seria mais fácil mas, neste momento, só podemos esperar e ver o que, dia após dia, vai acontecer. De qualquer forma, em termos de orçamento e do ERC, actualmente o Reino Unido está a receber mais do que paga, contribui com 15% para o orçamento da UE e vem buscar 20% do ERC. Portanto, de alguma forma, se saírem teremos mais dinheiro. Mas obviamente não queremos isso, antes pelo contrário.

Mas a ciência europeia vai sobreviver bem sem o Reino Unido?
Claro que seremos globalmente mais fracos. Mas esperamos que se mantenha uma associação entre países e que, no que diz respeito à ERC, não haja nenhuma mudança. Mas é claro que essa é uma decisão que está sobretudo nas mãos do Governo do Reino Unido. Vão ter de decidir se querem manter-se associados ao ERC e se estão dispostos a continuar a pagar para receber. Mas, independentemente de qualquer ideologia, acho que se fizerem uma análise baseado no custo-benefício vão encontrar mais razões para permanecer associados à União Europeia na Ciência e Inovação. A verdade é que, recentemente, não têm sido muito racionais, por isso não posso dizer que tenho a certeza que vão querer manter a associação. Mas é o que desejamos que aconteça. O mais importante é que a decisão seja tomada rapidamente. E isso não está a acontecer e é o que é mais preocupante. No lado científico parece ser tudo muito claro, há muito a perder para todos se deixarmos de ter estas ligações. Mas é uma decisão política.

Deixemos o Reino Unido de lado, então. De uma forma geral, qual é actualmente a maior força e a maior fraqueza da ciência europeia? 
A maior força é que continua a ser uma comunidade bastante bem organizada e que cobre todos os campos de investigação, independentemente de um país ou outro ser o líder em determinada área. Há uma variedade notável de instituições de alto-nível, investigadores de alto-nível e capacidade de atracção de pessoas mais jovens com muitas capacidades e muito talentosas. E, nesse ponto, o ERC dá um importante contributo. Dois dos nossos concursos são para investigadores com menos de 40 anos. Assim, conseguimos ter uma geração jovem mais dinâmica e garantir o acesso destas pessoas às iniciativas disponíveis. Isto é sem dúvida uma força. Repare, que a produção de novo conhecimento na Europa é ainda um terço do que é produzido em todo o mundo. Isso é muito significativo.

E a fraqueza? 
Bem, a fraqueza estará na forma como tiramos partido deste novo conhecimento e o transferimos para a economia. É um ponto em que o comissário Carlos Moedas [comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação] tem insistido muito. Ou seja, precisamos de ter investigação de alto-nível e muito dinâmica, capaz de criar novas tendências de investigação, mas ao mesmo tempo precisamos de ter um sistema mais eficiente para a inovação. Para novas descobertas e novos mercados ou desafios da sociedade. É algo em que estamos a trabalhar e há propostas de medidas no campo da inovação no próximo quadro comunitário. No lado da Ciência, de forma geral, é preciso “apenas” fortalecer o financiamento, mais agilidade, mas não é preciso mudar nada de estruturante. Aliás, como lhe disse quando falei sobre o ERC, o essencial mantém-se. Porém, do lado da inovação o comissário está determinado em fazer algumas mudanças importantes na maneira como a inovação é apoiada a nível europeu.

Além da inovação, o próximo quadro comunitário também terá importantes fundos que devem servir para explicar às pessoas o que é que os cientistas fazem. Ainda precisamos de convencer as pessoas sobre o poder e importância da ciência? 
Receio que sim. Se calhar Portugal está menos sujeito a esse tipo de movimentos anti-ciência, anti-especilistas, mas vemos isso em muitos países da Europa.

O movimento anti-vacinação… 
Sim, é uma desolação absoluta. Por isso, é claro que é preciso fazer mais trabalho. Os cientistas têm de participar nisto de forma mais activa e ir ao encontro das expectativas das pessoas. Devem fazer o esforço de explicar porque é que a ciência às vezes é lenta, ir até à raiz das coisas demora tempo, mas vale a pena. É um esforço a longo prazo, não se encontram soluções da noite para o dia. E se não procurarmos soluções nunca vamos resolver os problemas. As pessoas estão muito impacientes e, nalguns casos é compreensível, mas noutros temos de esperar pela reposta certa. É algo que temos de enfrentar ao mesmo tempo que temos o fenómeno das fake news. Temos de explicar bem as coisas às pessoas. Até porque as fake news, como se sabe, propagam-se mais rapidamente do que as notícias verdadeiras.

Mas também se sabe que as fake news são um velho problema, não surgiram agora… 
É verdade. Não são um fenómeno novo. O que é novo é a forma como agora estamos ligados nas redes sociais e a rapidez com que a informação se propaga. Há muito mais gente que apenas olha para uma coisa e gosta do que vê e pronto. Isso cria uma espécie de bolhas confortáveis. E se algo os provoca ou os espicaça eles simplesmente ficam ali, não procuram outros pontos de vista. Este fenómeno é fortalecido pela forma com estes media respondem: as pessoas querem uma resposta rápida e também uma resposta que os agrade. Estamos num tempo em que podemos assistir a uma regressão e temos e lutar contra ela.

Que tipo de legado gostaria de deixar no ERC? 
Oh… é uma pergunta difícil. O fundamental é o esforço que o ERC tem feito para dar poder aos cientistas. O legado que quero deixar é que os novos líderes sejam capazes de desenvolver a investigação, o seu projecto, a sua visão, graças ao apoio que damos. Esta é a nossa ambição. Identificar os novos líderes da ciência europeia. Até agora, acho que temos estado bastante bem e esperamos poder continuar isso com mais eficiência. Para mim, como presidente, é fantástico ouvir alguém a dizer ‘a bolsa do ERC mudou a minha vida’. 

Não é só uma questão de dinheiro mas o dinheiro é importante. O ERC teve 13 mil milhões de euros para o período entre 2014 e 2020, mas vai querer aumentar o seu orçamento, certo?
A proposta da Comissão Europeia para o próximo quadro comunitário, e que ainda terá de ser aprovada, é de 16,6 mil milhões para o ERC para sete anos, mas para 27 países em vez de 28. E como lhe disse o Reino Unido ficava com 20% do nosso orçamento, ou seja o aumento acabaria por ser quase de 50%.

O que quer fazer até ao final do seu mandato? 
Termino as minhas funções no final deste ano. Vou esforçar-me por garantir que a discussão do orçamento corre bem, não só o do ERC mas todo o que é dedicado à investigação e inovação. Queremos melhorar a avaliação dos projectos que já é de muito boa qualidade. A reunião de Portugal vai explorar essas questões e procurar novos cenários para a avaliação que vai ser definida em 2020 e 2021 para o próximo quadro comunitário. É um trabalho que vou fazer ainda até ao final e que quero garantir que é de qualidade. Há uma série de outras questões. Gostava, por exemplo, de contribuir nesta luta contra as fake news, tenho feito vários discursos sobre isso. Essa é uma grande ameaça para a ciência.

Deixa um ERC mais forte para o seu sucessor?

Não quero reclamar louros. Compete às outras pessoas julgar o trabalho que fiz. Mas a continuidade do sucesso do ERC tem sido reconhecida por avaliadores externos independentes. Tornou-se um programa de referência a nível mundial. E tive o maior prazer em contribuir para isso. Mas contribuí como muitas outras pessoas também o fizeram.

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