Comes e Bebes: caro MEC, nem tudo pode ser local ou biológico

Peço ao MEC que compreenda este meu defeito em função da minha formação e possamos, cada vez mais, desfrutar da felicidade que é comer e beber — produtos locais ou não, biológicos ou não. Há espaço para todos os sistemas alimentares e o mais importante é ser feliz.

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Lily Banse/Unsplash

Comprei, no último fim-de-semana, juntamente com o PÚBLICO de sábado, o livro Comes e Bebes: De que é que estavas à Espera? — da autoria do excepcional Miguel Esteves Cardoso (MEC) —, que reúne as crónicas publicadas pelo escritor na Fugas sobre os alimentos, as bebidas e os prazeres oriundos destas duas palavras mágicas. Uma verdadeira ode ao bem viver.

Li-o nas 24 horas posteriores à compra, tamanha a capacidade do autor em entreter-nos de forma simples e, ao mesmo tempo profunda, no emaranhado das suas experiências gastronómicas. Chega, inclusive, à façanha de conseguir transmitir com palavras sensações que variam entre a vontade de correr logo ao mercado municipal para comprar todos os vegetais e frutas da época à saudade — tão portuguesa, mas não só — que algumas refeições despertam em nós.

Sendo uma colectânea de crónicas escritas ao longo de uns bons anos, é de facto incrível como MEC é coerente e consegue propor um fio condutor daquilo que considera ser a sua filosofia em relação à alimentação. Fica claro, neste sentido, o seu apreço pelos alimentos produzidos localmente e a preferência pela agricultura biológica, além da predilecção pela flor de sal — que o autor cita em boa parte das crónicas.

Alimentos produzidos localmente e agricultura biológica têm, de facto, vindo a ser cada vez mais impulsionados em função das preferências dos consumidores, especialmente na Europa Ocidental. Em poucos anos, ambos os conceitos terão uma participação de mercado substancialmente maior e aos agricultores e às indústrias caberá adequar-se também a esta nova realidade.

No entanto, se me permite, com todo o respeito, caro MEC, gostaria de trazer alguns pontos de vista que podem ser complementares — nunca excludentes — a esta sua visão sobre os dois conceitos.

Sobre os alimentos produzidos localmente, parece-nos (ao MEC e a mim) que é a melhor opção quando se pode escolher. No entanto, saindo desta Europa rica, boa parte das pessoas do mundo — especialmente nos trópicos — tem problemas seríssimos em conseguir alimentos produzidos próximos dos locais de residência. Pelo lado da oferta, existem problemas relacionados à ausência de tecnologia mínima para os cultivos, questões climáticas ou eventual incompetência e corrupção nos sistemas alimentares locais. Pelo lado da demanda, a escassez crónica de recursos financeiros. Uma combinação que impede o “luxo” do buy local.

Além do mais, isso não significa, em meu entendimento, que produtos adquiridos no exterior sejam necessariamente de menor qualidade ou sanitariamente piores, como o MEC cita em diversas ocasiões. Parecem-me, sim, uma alternativa — muitas vezes necessária — para dar de comer a quem pouco pode gastar.

É uma forma também de evitar a reserva de mercado que invariavelmente privilegia os produtores protegidos em detrimento dos consumidores. Aliás, em muitos casos, as pressões de produtores locais europeus traduzem-se em imensos volumes de subsídios, desvirtuando o mercado mundial e prejudicando ainda mais os países pobres que só têm a agricultura como fonte de receitas.

Em relação à agricultura biológica, entendo que as pessoas queiram cada vez mais alimentos com pouco ou nenhuma intervenção humana. Percebo também que na Europa isto faça mais sentido. Não é o caso — ou, se preferir, a escolha — em muitas das latitudes próximas da Linha do Equador, onde a incidência de pragas e ervas daninhas é infinitamente superior ao que se encontra nos países de clima temperado, sendo necessária a utilização de recursos tecnológicos (pesticidas, fungicidas e herbicidas) para se conseguir produzir minimamente.

Além do mais, queiramos ou não, é necessário olhar sob a óptica da produtividade. Produções biológicas, em geral, têm indicadores de produtividade menores do que a agricultura, digamos assim, intensiva. Isto tem dois efeitos claros actualmente: produtos mais caros e que poucos podem pagar; e maior necessidade de terras e águas para a mesma quantidade de produto final, contrariando, de alguma forma, o preceito da sustentabilidade.

Finalmente, diversos estudos sérios indicam que não há diferenças nutritivas significativas entre os produtos oriundos dos dois sistemas alimentares.

Eu sei, caro MEC, que este seu livro é uma apologia aos prazeres da vida, dos quais os alimentos e bebidas seguramente estão no Top 5 de praticamente todas as pessoas lúcidas deste mundo. E lá vem um chato — que, fique claro, é o que escreve estas linhas — colocar questões, enveredar pela filosofia dos sistemas alimentares e trazer novas perspectivas.

Peço gentilmente, caso isto porventura chegue até ao MEC, que compreenda este meu defeito em função da minha formação e que possamos cada vez mais desfrutar da felicidade que é comer e beber — produtos locais ou não, biológicos ou não. Há espaço para todos os sistemas alimentares e o mais importante é ser feliz.

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