Carloto Cotta: aventuras do homem invisível

De Arena (2008, João Salaviza) a Diamantino (Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, 2018), do realismo à fábula, da consciência de uma fisicalidade à capacidade de fazer desaparecer o corpo. Conversas sobre a invisibilidade com Carloto Cotta — conversas cruzadas com João Salaviza, Miguel Gomes, Eugène Green e Gabriel Abrantes.

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Miguel Manso

“É uma ideia bastante interessante, a da invisibilidade. Gostava de ser invisível.” Não é ambição de prestidigitador. “Pode-se começar a compor a partir daí: usar o corpo como uma tela em branco.” E não têm sido necessários truques nem efeitos especiais. Vejam-se a curta-metragem Arena, de João Salaviza (os dilemas de um rapaz em prisão domiciliária; Palma de Ouro Cannes 2008) e, esta semana já nas salas, a longa-metragem Diamantino, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt (um futebolista que talvez possa salvar Portugal do esquecimento mas está em apuros: há um complot de extrema-direita para o instrumentalizar e clonar — Grande Prémio da Semana da Crítica em Cannes 2018). Num e noutro filme, que estão separados por dez anos, é o mesmo actor em ambiente distópico — Carloto Cotta, 35 anos — mas passa-se do realismo à fábula; e a consciência e a coreografia de uma fisicalidade, de uma sensualidade, dão lugar à capacidade de fazer ausentar o corpo, de o fazer desaparecer. Sem efeitos ou truques, é uma manobra de elisão que tem qualidades e consequências burlescas.

“A inocência para Diamantino era mesmo um dado de base...”, diz Carloto. “Mas... como chegar lá...?”. 

Começando com os “vislumbres” de um cliché, com “a ideia que as pessoas têm de um futebolista, do look de um futebolista, porque eles assemelham-se: as mesmas roupas, os mesmos carros e por vezes as mesmas mulheres”. Sim, Carloto foi até Cristiano Ronaldo como figura messiânica “que transporta uma ideia de Quinto Império, de glória; ele aparece e saímos da crise, é o nosso herói, vem salvar Portugal”.

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Miguel Manso

Depois, last but not the least, procurando uma ideia de voz, de sotaque (o realizador Gabriel Abrantes confirma: não estava sequer escrito no argumento...). Aí Carloto foi até ao seu personal trainer.

“Tive que começar a treinar para o filme, um treino muito intensivo, tive de me transformar fisicamente e isso envolveu um PT. Nunca tinha treinado em ginásio e tinha um tipo todos os dias a incentivar-me, a dizer o que eu tinha de comer. Levantava-me às cinco da manhã e ia correr e depois ia treinar outra vez à tarde. Faltavam três semanas para a rodagem e eu ainda com barriga. Assustou-me porque tinha de andar em cuecas no filme e tinha que parecer um jogador de futebol. Se fosse nos anos 80 ainda poderia manter os pelos e a barriguinha... Hoje não. Inspirei-me no PT porque ele era bastante incisivo nos treinos, falava bastante, frases motivacionais com sotaque” — açoriano, aliás, nada a ver com o sotaque madeirense de um clone de Cristiano. “Ia com a cantilena dele para casa: ‘não desiste, insiste, insiste, olha para ti, estás a ficar todo inchado’” — é o sotaque de Diamantino que Carloto aqui revisita... “A cadência dele tinha uma certa pureza. Era um tipo musculado e viril, mas com uma certa inocência, uma descontracção juvenil. Achei que poderia servir.”

Serve. Essa voz off talvez não salve Portugal mas, não estando inicialmente prevista, tendo sido decisão posterior, segundo o actor, para permitir coser imperfeições ou o que ficara solto devido a material que não pôde ser usado “por causa da câmara à mão, por causa do foco ou de outra coisa qualquer”, ela salvou o filme. Carloto teve que voltar a inventar, bastante tempo depois da rodagem, a personagem de Diamantino: teve que se pôr a mexer na sala da montagem; teve que “pôr aquela cara dele, para que a voz saísse espontânea, como tinha saído na rodagem, em que não houve diálogos escritos e apenas uma ideia de cena”. Savaguardou-se a possibilidade de empatia.

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Diamantino, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt: um futebolista que talvez possa salvar Portugal do esquecimento está em apuros: há um complot de extrema-direita para o instrumentalizar e clonar

Como uma criança que procura surpreender-se, o actor foi inventando palavras para a fulgurante ignorância e tocante naiveté da personagem — que estando a milhas da crise dos “(re)fugiados” da actualidade, quer adoptar um. A rematar a busca, a do actor que “gosta da ideia de improvisar” ou é autorizado a “partilhar” a sua “interpretação da motivação” da personagem, o golpe final, a pedra de toque, estar com o filme lutando contra o filme. É isso o que faz de Diamantino aquilo que é. Jogando-se o filme num espaço virtual, onde se simulam géneros — o thriller, o melodrama, a comédia burlesca, a fantasia —, onde eles são clonados, a personagem de Diamantino é um rasgão de sentimentos naquilo que sobra como memória liofilizada do que antes se chamou “cinema”.

“O Diamantino é um bocadinho de muitas coisas. Não queria fazer um boneco, mas uma personagem a viver num universo distópico em que muitas coisas são absurdas. Não queria algo de bidimensional.”

O homem-criança

“Com Diamantino”, diz Gabriel Abrantes, “queríamos mesmo que se tratasse de uma personagem virginal, assexuada. A psicologia contrasta com o  corpo musculado, cuidado de forma impecável: o corpo é uma espécie de protecção que esconde e camufla a sua personalidade. Essa dialéctica é de alguma forma tocante. O Carloto agarrou isso e é por isso que a personagem acabou por ser tão comovente. Não é uma estrela obcecada pelo seu corpo, ele apenas habita esse corpo.”

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TABU (2012) Miguel Gomes queria uma personagem “bastante branca, muito lisa, aquilo que o espectador quiser que ela seja, uma parede de projecção” — Carloto já aí a brincar ao homem invisível, portanto, num fantasma de filme clássico, e ainda por cima mudo

Miguel Gomes fala disso também, referindo-se ao seu Carloto, com quem trabalhou em Tabu (2012), A Cara que Mereces (2004) ou As Mil e uma Noites (2015), como um homem-criança. “Alguém que tem um corpo de adulto e que ao mesmo tempo tem qualquer coisa de inocente, um corpo musculado a comportar-se como uma criança de oito anos. No Tabu ele está perdido, não tem capacidade para reagir ao que se passa à volta. É uma personagem bastante branca, muito lisa, é aquilo que o espectador quiser que ela seja, uma parede de projecção” — Carloto já aí a brincar ao homem invisível, portanto, num fantasma de filme clássico, e ainda por cima mudo, se bem se lembram.

O realizador recorda uma rodagem “às vezes tensa” com o actor inquieto, sempre a insistir sobre pormenores psicológicos (“que a mim não me interessavam nada porque eu queria alguém naiv, uma criança apanhada no meio de algo que não dominava”). Mas a conclusão foi apaziguadora: a partida da equipa de Moçambique, no aeroporto, foi mesmo uma cena mirífica, para Miguel Gomes das coisas mais bonitas, “sem cálculo algum e com a maior das inocências” que um actor lhe disse: “Desculpa lá se te chateei demais, eu queria muito ir à procura da personagem mas há filmes em que a personagem é que vem ter connosco.”

“Mas ele tem outra faceta”, continua Gomes, “e é o mais incrível no Carloto: atira-se ao absurdo. Quando se pede a um actor para fazer algo de absurdo, uns acham piada outros ficam assustados, mas a maioria inventa filtros. O Carloto atira-se com uma espécie de inconsciência ou coragem imensa — dá-me igual — que é rara”. Servem, para isso, as memórias que tem de Carloto Cotta dentro da sua máscara de careto no II Volume de As Mil e uma Noites: a voz gutural, os sons graves a subirem abruptamente para os agudos e a ser difícil estar ao pé dele e não desatar a rir.

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DIAMANTINO (2018) Uma personagem “virginal e assexuada”, quis Gabriel Abrantes. “A psicologia contrasta com o corpo musculado, cuidado de forma impecável: o corpo é uma protecção que esconde e camufla a sua personalidade. Essa dialéctica é de alguma forma tocante. O Carloto agarrou isso, e é por isso que a personagem acabou por ser tão comovente”

“O Carloto é relativamente indirigível. Podemos restringir os campos histriónicos, dizer que os gestos estão muito amplos, porque quase todos os actores têm essa tendência. Mas é indirigível no sentido em que o processo por que passa para fazer o que lhe é pedido não é racional, é completamente entre ele e ele. Quem está a fazer um filme tem que tentar controlar por fora, mas há um limite para além do qual é impossível passar. Mas tenho absoluta confiança em que ele vai sempre descobrir algo que lhe agrada a ele e que me agrada a mim. É um caso extremo de alguém em cujos estímulos para poder representar, processar e devolver de determinada maneira eu tenho um grau de acção reduzido. Mas aceito isso.”

A harpa, o druida, o luthier e o geek

Carloto também tem uma versão de Miguel Gomes. “Há um lado infantil nele mas ao mesmo tempo há um virtuosismo de artesão. Parece uma coisa punk e irreverente. Mas trabalhar com o Miguel é como tocar harpa numa banda de punk rock. É tudo minucioso mas ao mesmo tempo de uma liberdade enorme. E nunca se sabe bem o que esperar. Isso dá imensa pica. É essa liberdade que adoro no Miguel” — deixa passar que ainda assim houve momentos em que levou “alguns berros”.

Se Miguel Gomes é uma harpa numa banda de punk rock, João Salaviza é um “luthier”. “Tem a precisão de quem está a construir um violino”. Descreve-o como um aventureiro “sólido”: “é minucioso, é orquestral”. Devolvendo o olhar ao cineasta: o Carloto de Salaviza tem “essa coisa mais selvagem, mais impura, dos não actores”. Repare-se: continua a ser até hoje o inédito encontro do realizador de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos com um protagonista actor.

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ARENA (2008) Carloto Cotta tem, para João Salaviza, “essa coisa mais selvagem, mais impura, dos não actores”. Continua a ser até hoje o inédito encontro do realizador com um protagonista que é actor

“Não conhecia o trabalho anterior dele, e mesmo a participação que teve no Odete [João Pedro Rodrigues, 2005] e na curta do Miguel Gomes [31, 2003] não me garantiam que fosse capaz de fazer a personagem. Até porque eu estava convencido de que ia ter como protagonista um não actor. E na verdade o Arena foi o único encontro meu com um protagonista actor. Mas hoje olho para o filme e vejo que se transformou por causa dele. Ele tem a capacidade, que poucos actores têm, de nunca fugir de si próprio. Comparo-o ao Brando e ao Dean, que tinham essa honestidade de gesto e de corpo: deixar sempre os rastos nos filmes por onde passam. Ele não esconde quem é. Tenho este desejo de trabalhar com não actores porque quero ver essas impurezas, esses vestígios das suas vidas.”

Em cinco minutos no casting para Arena, em que Carloto interpretou uma das cenas iniciais do filme, aquela em que, retido em casa com a pulseira electrónica, pede da janela aos amigos que lhe levem o lixo, Salaviza descobriu que era com ele que queria trabalhar.

“Ele tinha de estar à janela a falar com amigos imaginários. Quando vi, percebi que tinha uma loucura muito honesta e desligava-se da minha presença. Depois acreditava nela — quando havia algum erro ou alguma coisa que não funcionava — e de seguida reinventava-se de novo.”

O Carloto de Arena não faz manobras de elisão da sua fisicalidade. O actor recorda-se que desde as primeiras conversas com Salaviza tinha já a personagem consigo. Andava de pulseira electrónica a passear o cão ou a encontrar-se com amigos. Não seria isto demasiado corpo para mais tarde vir a ser Fernando Pessoa? Por isso o corpo desaparece em Como Fernando Pessoa Salvou Portugal, curta-metragem de Eugène Green (2018), e tudo se concentra nos olhos.

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COMO FERNANDO PESSOA SALVOU PORTUGAL (2018) Um daqueles exemplos da arte da elisão, paredes meias com o burlesco silencioso: o corpo anulado, é tudo olhos e coreografia de olhares. “Muito impressionantes”, admira o realizador, Eugène Green

De Green, americano de origem francesa que já o dirigira em A Religiosa Portuguesa (2009), Carloto bebe os silêncios. “Parece um druida, tem uma espécie de energia de sábio. Diz muito com os silêncios, parece que fala contigo de uma forma telepática, parece que confia numa inteligência que está para além do entendimento: algo maior do que a personagem, maior do que o filme, e de que o filme é um veículo. É isso o Fernando Pessoa, um canal”.

Confere: Eugène Green comenta que, como recusa construir intelectualmente a psicologia das personagens, nunca falou com Carloto Cotta do homem Pessoa nem do seu trabalho. “No dizer as palavras que eu tinha escrito, nos planos que eu tinha concebido, o Carloto produziu um Pessoa que era ao mesmo tempo o seu e o meu.” O resultado é um daqueles exemplos da arte da elisão, paredes meias com o burlesco silencioso: o corpo anulado, é tudo olhares. “Muito impressionantes”, admira o realizador. “Naturalmente o Carloto faz, com graça, muitos gestos e movimentos físicos, mas eu impedi-o de os fazer, para concentrar a energia no rosto. Esta energia traduziu-se então em mudanças de olhar muito subtis e significantes. É um autêntico actor, capaz de se adaptar ao estilo de diferentes realizadores.”

Mas é essa uma das formas que Carloto utiliza para caminhar para as personagens ou para deixar que elas se abeirem dele: “Tento entrar na cabeça dos realizadores. Muitas vezes vou beber ao realizador as coisas que vou fazer. A energia das pessoas já é uma indicação. Se pusermos o ego, as nossas construções, de lado e ouvirmos o que aquela pessoa quer da personagem, o que quer de nós, ver como aquela pessoa fala, mexe...”

Como mexe Gabriel Abrantes? “Já pensei no robot sentimental dos Humores Artificiais [curta de 2016]. À volta do robot tudo é sintético e cínico. Mas os sentimentos estão no centro. Uma vez eu precisava de um showreel [montagem para promover o trabalho do actor], e ele ajudou-me a fazer. Estávamos na ZDB e ele com o computador, com uma capacidade multitasking, a fazer a cena, a conversar comigo, a mandar emails… É difícil não nos apaixonarmos por ele. É uma pessoa rara. É um tipo super compassivo, que gosta das pessoas, não é de todo autista ou despreocupado. É muito generoso. Mas sim, tem um lado geek

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