A minha experiência de quase-morte em São Miguel

O meu drama era só este: à conta disto, vou perder o avião e sabe-se lá quando é que volto a casa. É costume dizer-se que, perante a morte, toda a vida nos passa diante dos olhos. No meu caso, a ameaça da morte só me fez pensar em burocracias.

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Paulo Pimenta

Quando vamos de férias, não contamos que a desgraça tome conta de nós. Esperamos que tudo corra pelo melhor, que a descontracção e a agenda livre tornem os nossos dias num contrabalanço das mini-tragédias e nos mini-sucessos que nos preenchem o resto do ano. Essa sensação é aumentada quanto mais belo for o nosso destino. Não é, portanto, de espantar que esperava que as minhas férias na ilha de São Miguel, com todas aquelas paisagens avassaladoras, fossem extraordinárias e retemperadoras. E foram-no. Menos no último dia.

Antecipava-se um tempo estranho: a manhã estava livre, mas a tarde estava reservada para o voo de regresso ao continente. Por isso, qualquer hora parecia morta, mas qualquer plano extraordinário poderia resvalar para um imprevisto que poria em causa a presença no assento do avião. Ainda assim, arrisquei: meti pela estrada regional a caminho da Ferraria, sem prever os trabalhos que aconteciam naquela via. Vários homens limpavam as bermas, eliminando ervas daninhas, ao passo que dois deles controlavam o trânsito, um sentido de cada vez, visto que as duas vias estavam reduzidas a uma só.

Quando cheguei à zona de trabalhos, o senhor de colete amarelo mandava-me avançar, mas algo me deteve. Não sei qual o motivo ao certo, mas optei por parar junto a ele e, após incentivo do sujeito, pus a primeira na caixa de velocidades. Um nanossegundo antes de empurrar o acelerador, um silvo distante fez-me ficar alerta. Numa situação dramática, o tempo parece distender-se, embora os nossos movimentos não sejam lestos a obedecer aos mandamentos mentais. Por isso, gelei e observei. No meu campo de visão entrava agora um Saxo cinzento rebaixado, sob uma fumarada digna de um filme do Tarantino, deslizando desgovernado sobre rodas estanques na direcção do desgraçado que controlava o tráfego. Por milagre, não lhe acertou. A roda esquerda acertou no lancil e, agora, o carro vinha na direcção do meu bólide alugado. Consegui ver as caras das duas pessoas que lá vinham dentro. No lugar do pendura, um tipo dos seus vintes, de esgar mais ou menos assustado, de mãos no tablier. No lugar do condutor, um mitra de capuz e óculos escuros, reclinado no assento, meio de lado sobre a manette das mudanças, não fossem as balas dos inimigos entrar pelo pára-brisas adentro.

Num mero instante, passou-me pela cabeça que o meu carro ficaria com a frente desfeita, e vi-me a tratar de tudo com a polícia. Ou a preencher longamente uma declaração amigável com o jagunço que fizera da estrada regional uma pista de rally. Ou, pior, no hospital por causa de uma perna partida ou de um abdómen desfeito. O meu drama era só este: à conta disto, vou perder o avião e sabe-se lá quando é que volto a casa. É costume dizer-se que, perante a morte, toda a vida nos passa diante dos olhos. No meu caso, a ameaça da morte só me fez pensar em burocracias.

Na verdade, tudo foi menos grave do que pareceu. O carro do mitra parou poucos metros antes de se encontrar com o meu capot, e arrancou dali para fora à mesma velocidade com que se despistara, deixando apenas uma nuvem de fumo para trás. Foi só ao ver o homem de colete amarelo agarrado à barriga, fruto do susto, que me apercebi da gravidade do que poderia ter acontecido: aquele tipo estivera a centímetros de ser esmagado por um bandalho que não devia estar habilitado para conduzir um jipe numa PlayStation, quanto mais andar numa estrada, e o meu habitáculo estivera perante a inevitabilidade de ser invadido por um automóvel, tivesse eu tido o azar de avançar quando o tipo do colete amarelo mo ordenara.

Foi depois de tudo que a ansiedade se instalou. A falta de cautela de um inconsciente poderia ter causado a morte a duas ou três pessoas. Talvez esteja a exagerar, mas agora posso dizer que escapei à morte em São Miguel por uma unha negra. Mas, pelo menos, no Paraíso já eu estava.

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