Afogados em carros, lisboetas de várias zonas pedem soluções – mas não a EMEL

Há estacionamento caótico em muitas áreas da cidade, onde há mais carros do que lugares, mas nunca a assembleia municipal recebeu tantas petições contra a EMEL.

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Nuno Ferreira Santos

Todos os dias, a partir das seis da tarde, começa nas ruas de Benfica uma dança infernal. Os protagonistas movem-se de um lado para o outro numa coreografia repetitiva, com ligeiras variações consoante as personagens, a rua ou os obstáculos que encontram.

São automobilistas à procura de lugar para estacionar: uma missão que tanto pode beneficiar de um golpe de sorte e cumprir-se rapidamente ou consumir muito tempo, tornando a coreografia cada vez mais repetitiva, mais nervosa. Os carros dão uma volta ao quarteirão, dão outra, vão à rua de cima, sobem ainda mais uma, regressam ao quarteirão de partida, estacam num cruzamento sem saber para onde ir.

Nas imediações da Estrada dos Arneiros e da Rua República da Bolívia, os prédios foram surgindo como cogumelos e em altura, albergando milhares de pessoas em pouco espaço. Raros são os edifícios que têm garagem. Se estacionar o carro por aqui sempre foi tarefa que exigiu criatividade e até alguma ilegalidade, a situação tem piorado recentemente. Há mais automóveis dos moradores (por vezes, vários na mesma casa), há mais automóveis de quem aproveita a proximidade do metro e dos autocarros, há mais automóveis de quem quer fugir ao estacionamento pago nas freguesias vizinhas.

Entre meados de Fevereiro e meados de Março esteve em consulta pública a entrada da Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) em Benfica, com vista à criação de dez zonas dentro da freguesia e a instalação de parquímetros. Um grupo de moradores mobilizou-se contra a chegada da EMEL, argumentando que não é isso que lhes vai facilitar a vida.

“Isto é lucrar com o problema, não é resolvê-lo”, diz José Antunes, primeiro subscritor da petição “EMEL em Benfica NÃO!”, que já está na Assembleia Municipal de Lisboa à espera de ser analisada. “As pessoas têm a ideia de que, vindo a EMEL, têm lugar garantido, mas isso não é verdade, simplesmente porque não há lugares”, afirma Maria João Ramos, outra subscritora.

Nas últimas semanas, em várias transversais da Rua República da Bolívia, como a Abel Manta e a Coronel Santos Pedroso, têm surgido nas varandas grandes tarjas negras com os dizeres “EMEL não” ou “Mais estacionamento”. É, segundo Maria João Ramos, um reflexo do estado de espírito de quem ali vive. “As pessoas vêm ter comigo e dizem que têm medo de sair com o carro porque, no regresso, já não encontram lugar para o pôr. Nem perto nem longe.”

Em muitas destas ruas há carros estacionados no meio da estrada e em cima dos passeios. A chegada da EMEL ditaria o fim dessas ocupações, ordenando o espaço público, mas, argumentam estes moradores, deixando centenas de pessoas sem alternativa de estacionamento.

Uma “geometria complexa"

É uma queixa que se repete noutras zonas da cidade. Moradores dos Olivais, Telheiras, São Domingos de Benfica e Carnide organizaram petições semelhantes às de Benfica e os seus representantes estão em contacto para coordenarem uma luta que dizem ser comum, porque comum é a sua situação periférica na cidade.

Estar às portas de Lisboa torna estas áreas apetecíveis para quem vem de fora e quer chegar ao centro – onde o estacionamento é pago – de transportes públicos. Isso tem originado situações caóticas em vários locais, como junto ao Centro Comercial Fonte Nova, em Benfica, onde moradores e comerciantes fizeram uma petição em sentido contrário: pedindo a entrada da EMEL. Isso também aconteceu, por exemplo, na Encarnação, um bairro em que estacionar em cima dos passeios se tornou hábito, sobretudo desde que passou a ser procurado por trabalhadores do aeroporto, passageiros, empresas de turismo e rent-a-car.

Tem havido um efeito dominó: à medida que as freguesias passam para a tutela da EMEL, as vizinhas sentem maior pressão de estacionamento e, pouco tempo depois, são elas a chamar a empresa.

“As juntas de freguesia têm vindo cada vez mais a solicitar a presença da EMEL nos seus bairros, reconhecendo a importância do trabalho da empresa”, refere uma fonte oficial da companhia, que constata: “Acomodar os 200 mil veículos dos moradores com os perto de 370 mil que entram diariamente na cidade e gerir os conflitos de interesse entre os residentes e quem vem de fora é uma geometria complexa, que só pode ser resolvida através de uma gestão racional e inclusiva do estacionamento, capaz de tornar a circulação urbana mais fluida e inclusiva, e é esse o grande desafio da EMEL.”

A questão, para os críticos, é se a gestão é bem feita. “O problema de fundo é que a EMEL, desde que foi criada e até há pouco tempo, incidiu a sua actividade em zonas que não eram sobretudo residenciais. Nesses casos, em geral, foi bem recebida pelos moradores porque facilitou-lhes a vida”, analisa António Prôa, deputado municipal do PSD, presidente da Comissão de Transportes, Mobilidade e Segurança da assembleia municipal, onde todas estas petições têm ido parar. “A EMEL não se adaptou a olhar para estas zonas residenciais de forma adequada e assim não está a resolver os problemas dos lisboetas, está antes a dificultar-lhes a vida”, critica.

O deputado, que no ano passado apresentou uma proposta controversa para dar uma ou duas horas por dia de estacionamento gratuito a cada lisboeta, diz que “é importante ter menos automóveis na cidade e promover outros meios de transporte”, mas que “não há o direito de violentar as pessoas sem criar alternativas de estacionamento ou de promover a sua adaptação” a outros modos.

Freguesias retalhadas?

Uma boa ajuda podem ser os parques dissuasores que são prometidos há anos mas que tardam em surgir. Para já está aberto o da Ameixoeira (501 lugares), em breve abre um na Rua Manuel Gouveia (398) e está ainda previsto um na Pontinha, com 1800 lugares. Quem tem passe Navegante pode deixar ali o carro por mais 10 euros por mês.

Além de quererem soluções para os problemas que já têm hoje, os peticionários querem que não lhes criem mais. “A freguesia dos Olivais tem um centro de saúde, uma esquadra, uma rede escolar até ao 12º ano. Oferece o direito à cultura, o direito ao desporto, o direito à liberdade religiosa. Todos estão previstos na Constituição”, expõe Rui Pinto de Almeida, impulsionador de um abaixo-assinado naquela freguesia, contestando a sua divisão em dez zonas.

Em Lisboa, os moradores têm direito a dístico de estacionamento para a zona onde residem e para outra, imediatamente contígua. “Se uma pessoa não tem a sorte de morar na zona do centro de saúde ou na mais próxima e tiver mesmo que ir de carro, acaba a pagar uma taxa extra para usufruir de um serviço público”, critica José Antunes, de Benfica, freguesia também dividida em dez zonas pela EMEL. “Em que medida é que retalhar as freguesias contribui para reduzir a entrada de carros na cidade?”, questiona Rui Pinto de Almeida. “Isto é só para gerar receitas.”

A EMEL responde que tem quatro critérios para a definição de zonas, sendo um deles a “coerência e identidade, respeitando os bairros e as actuais dinâmicas urbanas que defendem essas mesmas identidades”. Os outros são os limites administrativos das freguesias, as barreiras físicas e os grandes eixos viários.

Na última semana estiveram em curso os trabalhos de sinalização e colocação dos parquímetros na Encarnação, que vai passar a ser tarifada antes de a assembleia municipal se pronunciar sobre a petição. “É um desrespeito pelos cidadãos. É fazer pouco da iniciativa dos cidadãos”, censura António Prôa. “Quando a câmara, sabendo do acompanhamento da comissão, avança para a implementação de medidas sem esperar o contributo da comissão, desrespeita a assembleia e ignora as preocupações dos munícipes.”

No fim de 2018, a EMEL geria 76 mil lugares de estacionamento na via pública e 39 parques. Até 2020 quer chegar a todas as freguesias, gerindo mais 20 mil lugares. Para este ano está prevista a abertura de mais sete parques, com pelo menos mais mil lugares. Chegarão para acalmar o descontentamento?

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