No actual jogo de poder Lear não pode ser rei

Depois da saga Melrose, St Aubyn confirma o requinte da linguagem e o dom para retratar a crueldade. Basta seguir o caminho das personagens de Dunbar e As Suas Filhas, ou o poder e os seus abusos.

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St Aubyn volta a uma das tarefas em que é exímio: lidar com gente sem escrúpulos Leonardo Cendamo/Getty Images

Se o rei Lear existisse no século XXI seria um monarca? Esta foi das primeiras perguntas para as quais o escritor britânico Edward St Aubyn (Londres, 1960) procurou resposta quando se propôs criar uma versão contemporânea de uma das tragédias mais poderosas de William Shakespeare, O Rei Lear. Aqui, Lear não é rei, não é político, não é um industrial. Henry Dunbar, o protagonista de Dunbar e As Suas Filhas, é o dono de um dos maiores impérios mundiais de comunicação e é a partir desse pressuposto que St Aubyn, autor de uma das prosas mais requintadas da actual literatura inglesa, constrói um romance sobre o estado de permanência do poder, o efeito de estufa em que ele se desenvolve e propaga e passa de geração em geração, no caso a partir de pessoas que detêm o controlo da informação global.

Numa expressão feliz, o narrador criado por St. Aubyn descreve-o como um “bonecreiro que puxa os cordelinhos das suas marionetas”: os funcionários e cada uma das potenciais vítimas da atenção dos seus jornais. “Dunbar encontrava-se em parte fundido com o seu leitor ideal: a pessoa que odeia mitras, chupistas da Segurança Social, pervertidos e agarrados, mas também janotas, manda-chuvas, ricaços que fogem aos impostos e celebridades, na verdade, a pessoa que odeia toda a gente menos as pessoas iguais a ele, que odeia as coisas que lhe fazem medo ou inveja. Dunbar era a pessoa que lhes colocava a hóstia nas línguas estendidas, transubstanciando a passividade corrosiva desse medo e inveja na perseverança dinâmica do ódio.”

O mote é suculento. Depois dos cinco romances da saga Melrose (Deixa Lá, Más Novas, Alguma Esperança, Leite Materno e Por Fim, todos com edição portuguesa na Sextante), um trabalho recém adaptado a uma série de televisão e que projectou o talento de St Aubyn, o escritor volta a uma das tarefas em que é exímio: lidar com gente sem escrúpulos. No início do romance Dunbar, o velho canadiano, proprietário de tablóides, está numa instituição que trata doentes mentais. Num pacto de poder com o médico do pai, as filhas mais velhas, Abigail e Megan, afastaram-no da direcção do império e limitaram-no a um hospital no campo, perto de Manchester. “As filhas eram monstros porque ele as tinha tornado assim”, pensará mais tarde.

O doutor Bob aceitara o suborno delas, “a saber, um lugar na administração, um ordenado de seis milhões e meio de dólares e opções sobre acções correspondentes a um vírgula cinco por cento das acções do Fundo Dunbar. Era esse o seu preço para atestar que um homem de oitenta anos, num estado de ansiedade artificialmente intensificado, deixara de ser capaz de dirigir um dos impérios empresariais mais complexos do mundo. Não era mau negócio.”

Com a ajuda de Peter, famoso cómico alcoólico institucionalizado como ele, Dunbar projecta uma fuga para recuperar o seu lugar na empresa e tentar reatar relações com Florence, a terceira filha, nascida da única mulher que amou. Florence é a virtuosa, sem a ambição e a perfídia das meias-irmãs que, por sua vez, a desprezam e a querem ver longe. “... amava Florence simplesmente por ela ser filha de Catherine, sendo que Catherine era o grande amor da sua vida, um amor, ou, pelo menos, uma imagem de amor imortalizado pela morte, isento de declínio e da habituação, das forças triviais que transformaram a admiração em tolerância e a tolerância em irritação. Agora conseguia compreender, naquele momento de lucidez, que, após a morte de Catherine no desastre de viação, se tinha agarrado a Florence de um modo que poderia ter contribuído para o desejo de independência da filha e para a decisão desta não querer ter nada a ver com os negócios dele.”

Não foi difícil às duas irmãs convenceram o pai acerca da bondade de a afastar da empresa. E esta divisão, que será a divisão interior com que Dunbar, o homem que desprezava toda a gente, irá ter de se confrontar, é o núcleo da acção de um romance que se apresenta também como proposta de reflexão sobre a actualidade e os valores do presente, um tempo a que Dunbar, agora dado a reflexões mais íntimas, apelida de “o grande impostor”.

Peter, Henry e uma companheira de cárcere fogem e as consequências dessa fuga constituem o distribuidor de jogo decisivo para o decorrer da tragédia, pontuada por momentos de uma ironia certeira, também muito característica da prosa de St Aubyn, uma das ferramentas que usou na autobiografia ficcional da saga Melrose ao lidar com personagens tão desprezíveis como o pai de Patrick, o alter-ego de Edward, que como o seu pai abusou sexualmente dele e criança.

Já não estamos perante uma ficção a partir do “eu” dos romances anteriores, mas reconhecemos neste território dominado por poderosos ávidos um mundo que St Aubyn conhece intimamente. Uma atmosfera tóxica, de decadência humana tantas vezes a par da decadência de património, estilisticamente irrepreensível onde se percebe a proximidade literária do escritor com autores como Henry James, Edith Wharton ou Evelyn Waugh. É com o brilhantismo de Aubyn que seguimos um protagonista em luta interna contra o medo, a loucura, a perda e, exteriormente, os ardis montados para o derrubar. Dunbar é um homem solitário, entre momentos de lucidez e de cegueira, a peça inquietante, odiosa e por vezes a apelar à compaixão, a comandar a vertigem de enredo criada por St Aubyn. Uma vertigem a que o leitor quer ceder, lamentado qualquer pausa de leitura, antes de terminar o romance.

Não é Shakespeare, mas é mais um exercício literário de nível elevando patrocinado por Edward St Aubyn.

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