A guerra foi o que tivemos em vez de uma infância feliz (parte I)

O escritor Michael Herr disse uma vez que “se a guerra fosse um inferno e somente um inferno, sem outras cores na paleta, se a experiência bélica fosse feita somente de horror, não me parece que os homens continuassem a matar-se assim”. O primeiro passo para travarmos os delírios belicistas e xenófobos é percebermos o que neles nos seduz. Quinta de uma série de crónicas sobre o fim da Guerra das Guerras.

Foto

No Inverno de 1942, com 47 anos, Ernst Jünger, capitão do Exército alemão, visitou o Cáucaso. Viajou de Paris, onde passou a maior parte da Segunda Guerra Mundial, a sua segunda grande guerra, para visitar aquele recanto da frente leste. Ali chegado, depois de falar com as tropas no terreno e de circular de povoação em povoação pelas estradas de montanha, confiou ao seu diário de guerra as impressões acerca daquela realidade bélica, para ele, totalmente nova. No Cáucaso, como em toda a frente leste, pululavam na retaguarda alemã os partisans e as chamadas “leis da guerra” não eram respeitadas por nenhuma das partes. Não se faziam prisioneiros, ninguém dava quartel ao inimigo. As tropas russas, quando cercadas, e os partisans ainda mais, sabendo o que os esperava, resistiam até ao último homem. Jünger conta um episódio que lhe relataram: no Inverno anterior, um trenó em que viajavam oficiais russos perdeu-se e rompeu pelas linhas alemãs. Mal se aperceberam do erro, os russos agarraram em granadas de mão e suicidaram-se, fazendo-as explodir. “Descobri aqui coisas que relevam, pura e simplesmente, do domínio da zoologia”, escreve Jünger. Mostra-se incomodado com aquele modo de travar a guerra, que lhe parece semelhante a “um combate entre animais ferozes” ou a uma luta “entre ateus”. E torna claro que, para ele, as guerras não são todas iguais. Há a guerra que enobrece o homem, que o exalta, que traz à tona a faceta mais sublime de cada um de nós, e há aquela guerra vil, sem nobreza. “A guerra não é um bolo que os contendores partilham um com o outro por inteiro; resta sempre um naco comum. É a parcela divina, que é subtraída à batalha e que, por sua vez, subtrai o combate às regras da pura zoologia e aos poderes demoníacos.”

Foto
Ernst Jünger

Jünger era um homem interessantíssimo, culto, muito lido, mas havia facetas da experiência humana que lhe escapavam por completo. Guardadas as devidas distâncias, faz-me lembrar o meu avô. Homem lido, culto, com sentido de humor, salazarista convicto, germanófilo, com simpatias nazis. Uma vez, nos anos 1970, eu e os meus irmãos fizemos-lhe perguntas sobre Hitler e a Segunda Guerra Mundial. E o que lhe ocorreu sublinhar, depois de tecer considerandos sobre o Exército soviético que chegou a Berlim, foi isto: “Hitler tentou defender a Europa do perigo amarelo.” Já então, muito pequeno, pouco ou nada sabendo da história europeia, fiquei, ao ouvir isto, com a sensação instintiva de que o meu avô não percebera nada. Da primeira vez que li estas frases do diário de Jünger, senti o mesmo: este homem não percebeu nada. Esteve nas trincheiras, foi ferido não sei quantas vezes, olhou a morte nos olhos, viu tanto sofrimento, tanto horror e, mesmo assim, não percebeu nada. A guerra na frente leste, em 1942, não foi um desvio, o degenerar de uma coisa nobre. Foi o corolário lógico, o prolongamento natural de Verdun, do Somme, do Chemin des Dames. Pensar que os deuses do Olimpo desceram das alturas nos seus carros de guerra e conduziram os guerreiros de 1916 por entre a chuva de obuses e as nuvens de gás mostarda é tão absurdo, tão monstruoso e tão falho de clarividência como achar que Hitler foi uma barreira contra as hordas mongóis.

Aguentar o indizível

Estamos no bosque de Beaumarais com Noël Genteur. Aqui é o vale do rio Aisne, lá adiante perfila-se o planalto do Chemin des Dames. Os franceses ficaram entrincheirados nesta floresta durante quase três anos, face a face com os alemães. Viemos perceber como se viveu aqui. Tolstói escreveu em Guerra e Paz que a invasão da Rússia de 1812 só foi possível porque milhões de homens, em cujas mãos o verdadeiro poder residia, tomaram a decisão de cruzar a fronteira, de transportar canhões, de disparar espingardas, dando corpo à vontade do frágil imperador Napoleão e do frágil czar Alexandre. A Grande Guerra só foi possível porque milhões de homens decidiram aguentar o indizível. A que se agarraram? Onde foram buscar forças e ânimo? De que se alimentou a sua vontade? A ameaça dos conselhos de guerra e dos fuzilamentos seria bastante para os prender a todos aqui? Haveria Ernst Jüngers do lado francês? Tinha de haver.

Avançamos pelo bosque. “Sim, isto são buracos de obus. E aqui são as trincheiras. A primeira linha eram três trincheiras, a 20 ou 30 metros umas das outras.” Noël Genteur quer que entendamos todos os pormenores, quer fazer de nós portadores da memória. “Ali atrás, a 500 metros ou um quilómetro, ficava a segunda linha, outras três trincheiras, para o caso de estas caírem nas mãos do inimigo. E ainda havia a terceira linha, lá mais atrás.” Descemos para a vala de bordos suaves, pouco profunda. A chuva e a neve de cem invernos encheram de terra estas trincheiras até mais de três quartos.

Foto

Ernst Jünger escreveu um livro sobre a sua experiência na Grande Guerra, Tempestade de Aço, um clássico da literatura bélica. O entusiasmo com que ele relata a maior parte das peripécias da carnificina não deixa grandes dúvidas de que a guerra foi para ele uma experiência inebriante. Durante um ataque às linhas inglesas, em 1918, deu por si ao lado de um oficial de outro regimento, jovem como ele, ambos deliciados com o êxito da arremetida. “Ao fim de escassos minutos, a intensidade do entusiasmo que transmitíamos um ao outro deu-nos o sentimento de que nos conhecíamos havia muitos anos. Depois erguemo-nos de um salto e nunca mais nos tornámos a ver.” Seria isto que Jünger procurava na guerra? Esta comunhão febril, máscula, efémera, mas intensíssima? A páginas tantas, tece a seguinte reflexão: “A batalha une os homens, ao passo que a inactividade os aparta.” Como se só na guerra fosse dado aos homens saborear a tal parcela do bolo reservada aos deuses. Como se só na guerra houvesse uma verdadeira comunhão.

Pá e picareta

A Cecília pergunta quem escavava as trincheiras. Noël Genteur explica que eram os soldados, sempre de noite. Sem máquinas, sem escavadoras, somente com pá e picareta. A frente ocidental, desde o mar do Norte até à Suíça, media 750 quilómetros. “Um amigo meu, historiador, calculou quantos quilómetros de trincheiras os soldados franceses escavaram na guerra. Tentem adivinhar qual o valor a que ele chegou.” As minhas filhas dão palpites: três mil quilómetros, quatro mil. Noël Genteur faz um compasso de espera, deixa-as esgrimir números às cegas, como se certas coisas não pudessem ser ditas de imediato, tivessem de amadurecer e ser colhidas com cautela. Depois atira o número, como quem deixa cair um seixo na água: “Setenta e cinco mil quilómetros.” Pausa. “Setenta e cinco mil quilómetros, duas vezes o perímetro da Terra, tudo escavado à força de braços.”

Quando o meu pai morreu, fui em busca dos veteranos que fizeram a guerra com ele em Moçambique. Todos me disseram que sofreram muito no Ultramar, todos me contaram misérias e penas, mas nenhum deixou de me falar das amizades que ali se travaram. Um deles, o furriel Gamito, um homem extraordinário, disse-me uma vez: “A guerra foi uma coisa horrível, mas criaram-se ali, em dois anos, amizades que duraram para toda a vida. Aqui, na vida civil, não chegam 30 anos para conhecer um amigo. Lá, no mato, o que um tinha todos tinham. Tudo era partilhado, criaram-se laços indestrutíveis.” Michael Herr, correspondente de guerra da Esquire, bem mais tarde co-autor do argumento de Nascido para Matar, de Kubrick, chegou ao Vietname em Novembro de 1967, no mesmo mês em que o meu pai desembarcou em Moçambique para a Guerra Colonial. Nas páginas de Despachos, outro grande clássico da literatura de guerra, escreveu: “Creio que o Vietname foi o que tivemos em vez de uma infância feliz.”

“Os alemães estavam ali, naquele bosquezinho, a 200 metros.” Noël Genteur aponta. “A 16 de Abril de 1917, no primeiro dia da ofensiva do Chemin des Dames, quem ocupava este sector era o 208.º Regimento de Infantaria Francesa. Temos o testemunho de um tenente que saiu destas trincheiras com a sua companhia à hora marcada, seis da manhã. Duzentos e cinquenta homens. Ao fim de 80 metros, não conseguiram avançar mais. Esconderam-se em buracos de obus. Esta planície que vocês aqui vêem, tão lisa, estava toda escalavrada, parecia uma paisagem lunar. Ao cair da noite, quando o tenente conseguiu retirar com os sobreviventes para o ponto de partida, restavam 17 homens.” Pausa. Noël Genteur repete sempre os números, para que os fixemos bem. “Dezassete homens em 250.”

Escola do egoísmo

Louis Barthas, tanoeiro, pacifista, socialista, exprime nas suas memórias da Grande Guerra uma ideia diametralmente oposta à de Jünger. A poucos quilómetros da linha da frente, um comboio colide com um furgão de artilharia, matando três soldados. Os mortos são sepultados num campo, perante a indiferença geral. “Cada qual só se preocupava com a sua própria sorte.” E Barthas conclui: “A guerra é a melhor escola do egoísmo.”

A Francisca acha que o bosque onde estavam os alemães fica muito longe daqui. Duzentos metros, vistos de relance, parecem uma distância enorme. Como é que eles combatiam uns com os outros? “As espingardas de guerra, já naquele tempo, tinham um alcance de três quilómetros. Para alguém chegar a atirador especial, tinha de acertar com uma bala a 800 metros num quadrado com 15 centímetros de lado. Ainda hoje é assim.” Noël Genteur fez a tropa, sabe do que fala. “Duzentos metros não é nada para um atirador especial. Muitos homens morreram aqui ao espreitarem por cima do rebordo da trincheira. Os soldados eram seres nocturnos, ninguém se podia mostrar à luz do dia, passavam o dia inteiro escondidos.”

Foto
Ernst Jünger com as condecorações que ganhou na Grande Guerra

Jünger diz sempre as coisas mais reveladoras sem disso se aperceber. Um subalterno dele é ferido na traqueia por um estilhaço de obus. No hospital, onde Jünger o vai visitar, “a mudez tornava aquele homem ainda mais patético, de olhos fitos nas enfermeiras, perplexo, como um animal em sofrimento”. O ferido morre passados poucos dias. Abrigado numa casamata, Jünger observa o panorama das imediações do bosque de Saint-Pierre-Vaast, no Somme, e vê ao longe as tropas em movimento, flageladas pelos obuses, os grupos de homens em fuga precipitada, a atirarem-se para o chão. Eis o que lhe ocorre dizer: “Por vezes, principalmente ao alvorecer e ao crepúsculo, a paisagem não diferia muito de uma vasta estepe habitada por animais.” Talvez, em 1942, ao escrever o seu diário, Jünger já não se recordasse bem destes trechos, escritos 25 anos antes. Só assim se explica que não tenha entendido que já na Grande Guerra vira inúmeras imagens que relevavam, pura e simplesmente, do domínio da zoologia.

A Alexandra e as miúdas querem ir até ao bosque onde eram as linhas alemãs, para enganar o frio. Eu e Noël Genteur vemo-las afastarem-se pelo campo lavrado, as quatro de braço dado, muito encolhidas. Noël Genteur diz-me que elas caminham sobre mortos, assim como nós os dois. Toda esta terra está repleta de mortos, é uma grande vala comum a céu aberto. Pergunta-me a razão do meu interesse pela Grande Guerra. O interesse dele não precisa de ser explicado, ele lavra estes campos, todos os anos faz a sua colheita de obuses, é descendente directo de pessoas que sofreram a guerra na carne, caminha o ano inteiro sobre os mortos da Grande Guerra. Mas eu, o que me traz aqui? Quando fui a Moçambique visitar os lugares onde o meu pai fez a Guerra Colonial, senti em todos os olhares esta mesma pergunta: “O que fazes aqui?” Nessas viagens, tinha ao menos uma genealogia a que me agarrar como pretexto, como justificação. Aqui nem isso. Falo a Noël Genteur em Ernst Jünger, nos veteranos da guerra do meu pai, na fraternidade da guerra. Digo-lhe que quero entender como foi possível isto acontecer. Quero entender como foi possível Ernst Jünger gostar disto. Quero entender porque é que eu gosto tanto de ler Ernst Jünger.

Jünger conta que, ao crepúsculo, dois soldados britânicos que transportavam comida se perderam e foram ter às linhas alemãs. “Aproximaram-se na mais absoluta tranquilidade; um deles trazia um grande recipiente redondo de comida, o outro, uma chaleira alongada. Abatemo-los à queima-roupa; um deles caiu numa vala e ficou com as pernas estendidas no talude.” Jünger sente necessidade de se justificar. “Era quase impossível fazer prisioneiros naquele inferno e, fosse como fosse, como é que poderíamos tê-los levado até à retaguarda no meio do fogo de barragem?” Durante a grande ofensiva alemã de 1918, um jovem soldado britânico rende-se a Jünger, mas depois dá meia volta e torna a meter-se num abrigo. Jünger e os camaradas gritam-lhe que saia, mas o rapaz não obedece. “Pusemos fim à brincadeira com umas quantas granadas de mão e seguimos adiante.” Se eu pudesse entrevistar Jünger, perguntava-lhe qual é a diferença entre estas atrocidades e o “combate entre animais ferozes” que ele viu no Cáucaso, em 1942.

Foto
Linhas alemãs (vista de Beaumarais)

“Que se lixe, logo se vê”

O furriel Gamito contou-me uma vez: “Lá no Ultramar éramos novos, fazíamos as coisas sem pensar. Os primeiros 25 ou 30 quilómetros da picada do Chicôco para norte eram os piores em termos de minas, nós sabíamos perfeitamente. Mas a verdade é que fazíamos quilómetros e quilómetros sem pormos ninguém à frente da coluna, a picar. Seguíamos do Chicôco para Muítica a levar um destacamento. Os outros desciam de Muítica, encontrávamo-nos a meio caminho. Quando íamos a sair do Chicôco ou então no regresso, eu perguntava aos soldados: ‘Então, picamos?’ Ou às vezes eram eles que me perguntavam: ‘Furriel, a gente pica?’ Se eu dissesse que sim, eles picavam, nunca protestavam. Picar é muito cansativo, muito chato, mas eles nunca faziam má cara. Mas foram tantas e tantas as vezes que eu respondi: ‘O que é que vocês acham? Não, não picamos, vamos à sorte. Aqui não há minas. Despachamo-nos mais depressa.’ E seguíamos. Olhávamos para o relógio. Havia alturas em que uma hora ou duas a mais podia querer dizer dormirmos no mato em vez de irmos dormir ao quartel. ‘Vamos embora!’, dizia eu. E seguíamos sem picar, à confiança.” E depois disse-me: “Era assim uma espécie de embriaguez, como quando se joga às cartas a dinheiro e a parada fica muito alta e um gajo pensa: ‘Que se lixe, logo se vê.’”

Da segunda vez que fui a Moçambique, no Verão de 2016, a Renamo recomeçara a lançar ataques, vivia-se um ambiente de pré-guerra civil. O meu voo para Maputo era às sete da tarde de uma sexta-feira. Ao meio-dia, um amigo meu que mora em Cuamba, no Niassa, a uns 150 quilómetros do meu destino final, Maúa, mandou-me um email sucinto: “Ataque da Renamo em Maúa, mas vem na boa.” Não contei nada à Alexandra nem às miúdas, às sete da tarde sentei-me no avião. Viajei de Maputo para norte e comecei a sentir-me cada vez mais doente. Doente de medo, claro. Doía-me constantemente o flanco, como se tivesse corrido quilómetros e não pudesse mais. Em todas as televisões havia imagens com cores empasteladas de ataques de “bandidos armados da Renamo”, como diziam os locutores. Nos ecrãs desfilavam automóveis a arder, pessoas feridas, cadáveres, muitos soldados de Kalashnikovs na mão. No Niassa, todos os moçambicanos falavam da guerra que estava a recomeçar. Em Cuamba, no dia em que ia partir de jipe para Maúa, acordei de manhã, em casa do meu amigo, com falta de ar, cheio de dores, quase sem me conseguir mexer. Pensei em voltar para trás, tremiam-me as mãos ao tomar o pequeno-almoço. Até que me senti invadido por uma estranha exaltação, um misto de embriaguez e indiferença, e disse para comigo: “Que se lixe, vamos embora.” E o que se operou em mim foi só isto: o ponteiro da mais tosca masculinidade a percorrer a escala. Lembrei-me de Jünger, lembrei-me do furriel Gamito e disse para comigo: “Não lhes podes ficar atrás.” Ouvi o mais banal canto de sereia da virilidade em bruto, senti-me chamado a mostrar as minhas credenciais de homem, de macho, como em garoto. E não vale a pena estar aqui com rodeios. De quem eu me lembrei mesmo, naquela manhã, não foi de Jünger, não foi do furriel Gamito. Foi do meu pai. Vi a água a estremecer no copo que a minha mão segurava, fitei-me ao espelho e disse: “Nem penses que lhe vais ficar atrás. Vais fazer o mesmo que ele fez, vais andar em picadas arriscadas, ao encontro de lugares perigosos. Nem penses em dar parte de fraco.” Despedi-me do meu amigo, meti-me no jipe e arranquei. Senti-me, quase me envergonho de o dizer, estupidamente eufórico, como se me desforrasse de agravos passados. A avançar naquela picada, ao encontro de uma possível guerra, senti-me em comunhão com Herr, com o furriel Gamito. Senti-me até, coisa extraordinária, em comunhão com Jünger. E, por estranho que pareça, aquele foi um dos momentos da minha vida em que senti maior comunhão com o meu pai. É isto, afinal, que quero entender. Mais tarde, em Maúa, contei a um moçambicano a minha apreensão e ele disse-me com o ar mais calmo do mundo: “Não tinha de se preocupar. Eles nunca atacam duas vezes na mesma aldeia.”

Foto
Casamata alemã no Planalto Californie

À procura de quê?

Em teoria, Michael Herr não tinha de ir para o Vietname. Foi até lá porque quis, moeu o juízo aos responsáveis da Esquire até eles o mandarem para lá como correspondente. Escreveu em Despachos que “não havia dia em que não me perguntassem o que é que eu estava ali a fazer”. A mesma pergunta, no fundo, que Noël Genteur me fez. A desculpa habitual a que Herr costumava lançar mão era que estava a escrever um livro. Eu próprio podia ter dito o mesmo a Noël Genteur: estou aqui para escrever um livro. Herr, com uma clarividência impiedosa, acaba por explicar que havia um elo poderoso a unir todos os americanos presentes no Vietname, os soldados rasos, os espiões, os civis, os correspondentes: “Todos os percursos míticos se cruzavam, desde o mais reles sonho húmido ao jeito de John Wayne à mais exacerbada fantasia de soldado-poeta, e, nesse ponto de intersecção, creio que todos sabíamos tudo acerca de todos os outros, sabíamos que todos os que ali estávamos, do primeiro ao último, éramos voluntários no sentido mais genuíno da palavra.” A mesma ideia que Tolstói exprime em Guerra e Paz, afinal. E os soldados da Grande Guerra, os homens que sofreram tanto nestas trincheiras, foram também voluntários? Sim, foram-no, pelo menos em Agosto de 1914, durante a grande embriaguez inicial.

Foto
Casamata alemã no Planalto Californie

A 30 de Janeiro de 1968, dia do meu primeiro aniversário, em que o meu pai escreveu na sua agenda de guerra, nas profundezas do Niassa, “O Paulo ‘batata’ faz um ano!”, Herr assistiu in loco ao começo da devastadora ofensiva do Tet. Estava no delta do Mekong, num acampamento das Forças Especiais que foi atacado por vagas de vietcongues. Teve de pôr de parte a sua neutralidade de correspondente, pegou numa arma e começou a disparar. Na manhã seguinte, o prado em volta da base estava juncado de cadáveres de atacantes. Herr olhou para o monte de cartuchos vazios a seus pés e resumiu a experiência nestes termos: “Não me lembro de alguma vez me ter sentido tão cansado, tão mudado, tão feliz.” Talvez Jünger, bem vistas as coisas, conhecesse como a palma da sua mão certas facetas da experiência humana. Se na guerra todos somos, no fundo, voluntários, de que é que Herr foi à procura no Vietname? De que é que o meu pai foi à procura em Moçambique? De que é que Jünger foi à procura nas trincheiras? De que é que eu vim à procura neste lugar? Ruy Belo escreveu:

          Tragam-me tudo menos a infância, a
          infância é um lugar de sofrimento

O que é que nós, homens de infâncias infelizes, procuramos na guerra?

A Alexandra e as miúdas não chegam a atravessar o campo de lavoura, não alcançam as antigas linhas alemãs. Vejo-as hesitar a meio caminho, pairar por ali, voltar para trás. Dão meiavolta mais ou menos no mesmo ponto onde, no dia 16 de Abril de 1917, o tenente e os soldados do 208.º de Infantaria viram travado o seu avanço. Era impossível ir mais além. Havia demasiadas metralhadoras alemãs em casamatas de betão armado, que o bombardeamento deixara indemnes. Havia demasiado arame farpado que os obuses franceses não tinham conseguido cortar.

Vemo-las aproximarem-se, as quatro de braço dado, caminhando sobre os mortos da Grande Guerra com os seus passos leves de mulheres, talvez imunes, pela sua natureza feminina, a certas exigências e entusiasmos autofágicos. Noël Genteur diz-nos:

          — E agora vou contar-vos como é que os homens viveram três anos nestas trincheiras do bosque de Beaumarais.   

Sugerir correcção
Ler 1 comentários