Zeca no país da delicadeza perdida

O velório de Zeca Mendonça começa hoje às 18h na Basílica da Estrela, em Lisboa. Porque é que tantos, entre jornalistas, militantes e dirigentes do PSD, adversários, adoravam o Zeca? Talvez porque ele vivesse no tempo da delicadeza, esse ideal de Chico Buarque raramente possível de alcançar

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Zeca Mendonça aplaudido ao passar pelo palco numa manifestação espontânea de afecto dos militantes no congresso de 2016 Adriano Miranda
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Em Fevereiro de 1995, o PSD sofria em público as dores da sucessão do seu líder mais carismático pós-Sá Carneiro, Aníbal Cavaco Silva, que ao contrário do fundador chegou a velho. A morte prematura divinizou Sá Carneiro, a imagem de Cavaco acompanhou o envelhecimento do corpo.

Nesse Fevereiro do fim do século XX, no Coliseu de Lisboa, o mito Cavaco continuava a ser uma poderosa força dentro do PSD, a que o desgaste de dez anos de poder não tinha retirado electricidade. Ao lado de Cavaco, havia outra força, mais tranquila e doce, dotada de um sentido de humor que faltava ao chefe e de uma empatia descomunal (que também não abundava acima) com companheiros, adversários políticos e jornalistas - e verdadeiramente amado de forma inabitual por um número anormalmente elevado de pessoas. Chamava-se José Mendonça, Zeca para quase toda a gente, e já nesse ano de 1995 era o histórico assessor de imprensa do PSD.

Nessa noite de sábado, 18 de Fevereiro de 1995, o Coliseu era um antro de “hooligans políticos” e fumo – sim, fumava-se, e muito, e em todo o lado, incluindo em congressos do PSD. Não me lembro se o Zeca já tinha deixado de fumar nessa altura.

Uma intervenção de Luís Filipe Menezes incendiou os hooligans barrosistas e o congresso foi interrompido por uma gritaria alucinada.

E quem conseguiu acalmar aquele manicómio? António Pinto Leite não conseguiu. O histórico da Nova Esperança ainda se chegou ao microfone e gritou “Companheiros, companheiros…”. Tudo em vão. É Zeca quem salta para o microfone e, “em nome do professor Cavaco Silva”, restaura a ordem na sala. A voz é firme, de comando: “O professor Cavaco Silva, que está ali atrás de nós, pede aos senhores congressistas que se acalmem”. Acalmaram-se. Escreveu o PÚBLICO sobre o acontecimento: “Zeca vira-se para trás e Cavaco acena com a cabeça. Com a ‘palavra’ de Cavaco, Zeca salvou a noite ao PSD. Foi o homem da maratona”. A ordem regressa quase de seguida. No dia 20 de Fevereiro de 1995, o jornalista Raul Vaz, na altura editor de política do PÚBLICO, escreverá que uma das coisas que marcou o congresso da sucessão de Cavaco foi “a habilidade de Zeca Mendonça, o homem que melhor conhece o PSD”.

Era o homem que melhor conhecia o PSD e, num partido habituado a choques regulares, o Zeca dava-nos a tranquilidade das coisas permanentes. Os líderes que passassem, o Zeca estava lá. Quando na quinta-feira, dia da sua morte, as notícias revelaram que o Zeca tinha 70 anos, tive um momento de pasmo. Era impossível. O Zeca não podia ter 70 anos. Na minha cabeça tinha 50 – e eu eventualmente 30. Se o tempo tivesse efectivamente passado, tudo teria mudado, como dita a ordem natural das coisas. Mas o Zeca não tinha mudado. Ele era a mesma força tranquila, dotado de um sentido de humor raro, irresistível e por vezes cáustico, de uma capacidade de olhar e tentar compreender o outro, capaz de bondade e compaixão. A palavra compaixão, em português, não funciona bem, tem uma carga pesada. No caso do Zeca, a inglesa “compassion” funciona melhor. E essa compassion é uma qualidade rara nos tempos de fogo e fúria em que nos calhou viver. Quando Santana Lopes recorda que, a dada altura, era Zeca Mendonça o seu único confidente, é essa compassion de Zeca que é revelada.

O mistério de Zeca é real. “Como é que uma pessoa que vive no mundo pervertido de jornalistas e políticos chega ao fim da vida com toda a gente a gostar dele”, interroga-se uma jornalista que acompanha a política nacional há 40 anos. Não é fácil responder a esta pergunta. Zeca morava no tempo da delicadeza, no país da delicadeza perdida – para usar metáforas buarqueanas que quase toda a gente percebe.

Enquanto assessor de imprensa, Zeca Mendonça conseguiu uma unanimidade entre jornalistas impossível de igualar. Além de ter cativado – no sentido de O Principezinho – todos os jornalistas que têm hoje entre 25 e 80 anos, por ser absolutamente irresistível, tinha a qualidade rara de não tentar interferir no nosso trabalho. Não me lembro de um telefonema do Zeca a chatear. Ele fazia o seu trabalho, os jornalistas o deles. Toda a gente sabia que o Zeca não mentia e nunca faria fitas nem cenas: alguma vez um gentleman faz cenas? Eu, que passei a minha vida a “bater” no PSD (e não só), nunca ouvi ao Zeca um avo de animosidade. E Deus sabe que isso quase não acontece.

Ao longo destes 30 anos, o Zeca viveu uma quantidade enorme de tempestades no seu PSD, o partido que ajudou a criar, recolhendo assinaturas. Quando a situação política era caótica, Zeca mantinha uma serenidade inexplicável – e conseguia cortar o clima tenso com uma tirada de humor, usando às vezes a causticidade. Foi leal a todos os líderes. Quando era jovem, chegou a meter-se numa “conspiração” contra um dos primeiros presidentes do PSD e pensou que iria ser despedido. Não foi, mas a partir daí decidiu que no partido mais canibal do país, ele não participaria nunca mais no banquete. Alguns dos líderes tentaram rodear-se de homens de confiança, temendo que o estatuto de permanência de Zeca, tendo sido leal aos seus antecessores – e genericamente adversários – pudesse não ser útil. Mas acabavam por perceber que Zeca Mendonça era uma instituição e as instituições, quando são fortalezas, são essenciais na vida.

Zeca nunca escreveu o livro de memórias que todos lhe pedíamos – foi testemunha privilegiada dos bastidores de uma parte da história do país. Ele dizia que a lealdade não o permitiria. Também não teve tempo para isso: morreu em serviço, já não no PSD, mas ao lado de um dos ex-presidentes do PSD ao lado de quem mais se divertiu: Marcelo Rebelo de Sousa.

Eu chamava-lhe “Jozeca” porque um dia me tinha contado que o facto de ser conhecido no partido por um diminutivo – o seu nome era José Luís – dava azo a grandes confusões entre os militantes de base. Chamaram-lhe muitos nomes diferentes ao longo da vida e uma vez recebeu um telefonema para “o senhor Jozeca Mendonça”. Agora acabei de ler a crónica do Bernardo Ferrão no Expresso e vi que ele também lhe chamava “Jozeca”.

O Zeca ensinou-me muitas coisas na vida, nomeadamente ajudou-me a perceber o partido de que era assessor sem propaganda patética nem manipulação ridícula nem abstrusa divinização do chefe, como tantos assessores de imprensa – nomeadamente aqueles que foram jornalistas, o que Zeca nunca foi – fazem. Que se dane a frase do “não há insubstituíveis”. É mentira. Há insubstituíveis, pelo menos no país da delicadeza perdida.

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