UE e China: uma nova relação híbrida

Este é o início de uma nova e híbrida relação com a China, onde esta será tratada como parceira em certas áreas e como concorrente noutras.

Uma das (muitas) consequências do “Brexit” é a sua apropriação dos meios de comunicação social. Há já algum tempo que as manchetes de jornais sobre a falta de estratégia política britânica fazem parte do nosso dia-a-dia como europeus. No entanto, se filtrarmos o ruído que vem do outro lado do canal, vemos que há uma outra batalha, superior em relevância e dimensão, a ser combatida a nível europeu. Líderes e instituições debruçam-se cada vez mais sobre a questão chinesa; ou, trocado por miúdos, sobre o tipo de relação que a UE deve adotar com a China enquanto superpotência. Em apenas nove meses, o discurso europeu mudou radicalmente: ao passo que em julho de 2018 a UE louvava a China como importante parceira global — os dois lados comprometeram-se a promover a liberalização do comércio na sua 20.ª cimeira —, em Março de 2019 a Comissão Europeia classificou-a como “rival económico” e “adversário sistémico". Neste panorama, e apenas a umas semanas da 21ª cimeira entre a UE e a China, marcada para 9 de abril, importa responder a algumas perguntas sobre esta mudança de atitude europeia.

Porquê agora?

Verdade seja dita, o tom mais assertivo da Comissão não representa um volte-face por parte das instituições europeias, mas sim um culminar de tensões que foram crescendo ao longo dos últimos dois anos e que resultam de vários fatores:

1. Uma mudança do panorama político chinês. No 19.º congresso do Partido Comunista Chinês, em outubro de 2017, as ambições do Presidente Xi Jinping tornaram-se brutalmente óbvias. Xi quer tornar a China num centro político, económico e militar global, através de um sistema de partido único revigorado. Atualmente, o partido exerce um apertado controlo sobre o Estado, a economia e a sociedade.

2. A ascensão e crescente sofisticação da economia chinesa. Em 2001, a China correspondia a 4% do comércio global, quota que saltou para 13% em 2018. Os fluxos de investimento inverteram-se a partir de 2014, quando os investimentos chineses na UE começaram a superar o investimento europeu na China (em 2017 foram quatro vezes maiores). Este desenvolvimento económico produziu uma mudança nas dinâmicas de poder entre a UE e a China. Ao subir na cadeia de valor, a China deixou de ser um mero local de produção ou um simples mercado de vendas, para se tornar num concorrente direto da indústria europeia. Ora, um Estado altamente intervencionista a operar numa economia tão dominante conduz a distorções no mercado global.

3. O gradual reconhecimento por parte da UE do grande atraso em relação à China em inovação. Especialmente no desenvolvimento da AI, onde a vantagem chinesa advém não só das políticas anti-competitivas promovidas, mas principalmente da dimensão do mercado doméstico, de uma sociedade orientada para a tecnologia e da enorme disponibilidade de capital.

4. A pressão sobre a UE para esboçar uma política económica externa mais assertiva, uma vez que os EUA optaram pela via do unilateralismo.

5. Uma frustração crescente em relação às assimetrias existentes entre a China e a UE, quer no acesso aos mercados, quer no tratamento de empresas estrangeiras.

Como está a reagir a UE?

Para responder a esta pergunta, uma outra se sobrepõe: o que está em causa? Tudo, como sempre. Desde a concorrência ao investimento, passando pela inovação; dos direitos humanos aos direitos ambientais; muitas destas lutas são antigas. Contudo, por todos os fatores mencionados, existe hoje uma vontade política a nível europeu que não existia antes. Existe também uma vontade franco-alemã que antes estava ausente e é agora capaz de apoiar uma Comissão sedenta de ação.

Algumas medidas já tomadas são bem-vindas, como a criação do mecanismo de escrutínio sobre o investimento direto estrangeiro e o aumento do financiamento para inteligência artificial (podem, no entanto, ser insuficientes). Adicionalmente, a Comissão publicou a 12 de março uma comunicação na qual define dez medidas a tomar para uma relação mais equilibrada com a China. Concretamente, a Comissão pressiona o Conselho para adotar, ainda este ano, o Instrumento Internacional de Contratação Pública (um instrumento que visa penalizar o acesso ao mercado público europeu — o maior do mundo — com base no princípio de não-reciprocidade). A Comissão compromete-se também a rever a sua policy toolbox para lidar com desafios atuais, como a legislação europeia sobre concorrência e auxílios estatais. Nestas áreas é provável que haja progressos significativos.

Protecionismo? Not so fast

O novo “tom” europeu, a panóplia de propostas e todo o ruído à volta da questão chinesa suscitam uma outra a pergunta: estará a UE a embarcar num protecionismo à la Trump? Numa palavra, não. É importante notar que, apesar de a UE e os EUA partilharem algumas preocupações em relação à China, os europeus parecem não estar dispostos a desafiar a sua relação comercial com os chineses (e vice-versa). Ambos os lados pagariam um preço demasiado alto por isso. A China é o maior parceiro comercial da UE e esta é o segundo maior parceiro chinês. Ao contrário da atitude adotada por Donald Trump, a UE não propôs uma dissociação comercial ou tecnológica da China, nem criou um conflito bilateral. Não vai adotar uma atitude discricionária ou ignorar as regras de governação internacional. Vai procurar solidificar o quadro institucional e legislativo europeu para conseguir fazer face à concorrência e domínio chineses no longo prazo, enquanto mantém os compromissos previamente assumidos.

Este é o início de uma nova e híbrida relação com a China, onde esta será tratada como parceira em certas áreas e como concorrente noutras.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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