As coisas divinais que a ria de Aveiro nos dá

O nome até pode assustar, mas dos tachos do restaurante Praia do Tubarão saem coisas únicas, peixes e mariscos de grande delicadeza e sabor.

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Adriano Miranda
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É um petisco sazonal, raro e único, que só há durante meia dúzia de semanas. Hoje já dificilmente de ouvirá o pregão estridente e ritmado das peixeiras anunciando “galeoooota” pelos povoados da ria de Aveiro, mas na Costa Nova todos sentem quando há pescaria. E é esta a temporada, entre finais de Março e início de Abril. Sem pregões nem anúncios, que o petisco é um luxo raro e que apenas se saboreia em locais específicos, como é o caso do restaurante A Praia do Tubarão.

Uma casa que é também muito especial, e nem só pela típica casinha de madeira com coloridas faixas verticais. É antes, e essencialmente, por ser um dos raros restaurantes que teimam em presentear a clientela com produtos locais e de temporada, e em absoluto respeito pela tradição culinária. Um dos bastiões da típica gastronomia lagunar, confeccionada com rigor e esmero.

Não se sabe como chega a galeota – nem importa saber –, até porque, não sendo proibida a apanha, não se pode já dizer o mesmo em relação às artes tradicionais usadas pelos pescadores para a poderem recolher em quantidade. E são divinas estas larvas do lingueirão que a partir de meados de Março povoam o fundo da ria. Um petisco único, de sabor fino, intenso e delicado.

A melhor é a mais pequena, a das primeiras semanas. Provámo-la numa caldeirada e também em fritura crocante, que são duas das mais representativas especialidades da cozinha do Praia do Tubarão. Levemente envolvidas numa farinha muito fina – para não se agarrarem –, a fritura é uma delícia. Pérolas de sabor estaladiças que rebentam na boca em sabor marinho, fino e delicado. Sabor que é ainda potenciado na caldeirada, com a envolvência do molho com sal de unto, o alho, a cebola, e rodelas de batatinha de areia que o absorve. Divinal!

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Na lista, claro, a galeota não consta. E mesmo nesta altura não sai todos os dias, sendo, por isso, conveniente indagar de antemão. São, então, meia dúzia as “Especialidades para duas pessoas”, que se apresentam em arroz de lagosta, caldeirada de enguias, dois ensopados (de garoupa e de rodovalho), arroz de camarão ou arroz de amêijoa com gambas.

Nos “mariscos” manda também o tempo, as marés e a pescaria, mas há sempre o camarão tigre para grelhar, as gambas (fritas ou ao natural), o camarão da costa, a amêijoa à Bulhão Pato e até a sapateira recheada, propícia que é para saborear no remanso da esplanada nos dias amenos que se anunciam.  

Soberbos os berbigões que igualmente pudemos provar, uma essência marinha de sabor intenso, iodado e levemente salgado. Gordos, fresquíssimos e exemplarmente cozinhadas. Apenas uma brevíssima fervura, que os deixa a suar e assim inundam a boca de prazer. Não deve haver coisa igual.

Nas frituras, os pedacinhos de lula são igualmente exemplares na sua crocância, leveza e sabor. E o mesmo se diga em relação às enguias, que são outro dos privilégios gastronómicos da cozinha típica da ria.

É no tacho, no entanto, que brilha a cozinha deste enganador Tubarão. “Confeccionamos todos os nossos pratos na hora”, adverte a carta em letras vermelhas, como que a afugentar os menos exigentes e apressados. E ainda bem, dizemos nós. Seja porque a boa cozinha tem os seus ritmos e tempos, seja ainda porque este não é restaurante para gente de critério gastronómico maleável.

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É com cebola, alho, folha de louro, raminho de salsa e as batatinhas da areia em rodelas que arranca o ensopado. O sal de unto (gordura de banha) dá-lhe a especificidade do sabor que os grãos de pimenta ajudam depois a espevitar. As finas postas de rodovalho só são colocadas na fervura quando as batatas estão já quase cozidas. Tapa-se o tacho e assim vem à mesa.

Assim se cozinha um dos pratos maiores da gastronomia da ria. As texturas elegantes e definidas, os sabores em perfeita combinação e equilíbrio e prazer que tudo isso dá, é tudo obra e arte da mão que o cozinha.   

A carta propõe ainda os peixes do dia para grelhar, filetes de pescada, o bacalhau no forno e os bifes da praxe, mas parecia já heresia desbaratar tanto sabor e prazer entranhados com os ovos-moles e areado de amêndoa que foram ainda servidos.

E se o nome até pode assustar, o Tubarão é delicado, os peixes frescos e exemplarmente cozinhados com critério, rigor e a identidade da cozinha local. Privilegiando a Bairrada, a carta de vinhos é contida mas equilibrada e o serviço, amigo e afável, igualmente exemplar. Por tudo isto, será sempre prazerosa e enriquecedora a passagem por este restaurante que é também património da gastronomia da ria.

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