“O mindfulness não é uma panaceia para problemas psicológicos ou psiquiátricos”

Eline Snel criou um método para crianças dos 5 aos 12 anos que está a ser posto em prática em escolas europeias, mas não só. O objectivo é que as crianças ganhem consciência de si e se tornem mais focadas e controladas.

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Miguel Manso

Eline Snel trabalha há 20 anos como terapeuta e desenvolve programas de meditação e de mindfulness. É fundadora da Academy for Mindful Teaching, em Leusden, Holanda, onde dá formação nestas áreas, também dá formação a futuros médicos e professores. Há uns anos aceitou o repto de criar um programa para crianças em contexto escolar. Agora, o desafio são os adolescentes. A avó de nove netos viaja pelo mundo – da América Latina a Hong Kong, passando pela Europa – a dar formação e conferências. Na manhã deste sábado esteve em Lisboa, num encontro com pais, professores e psicólogos no Externato Marista. 

Na sua mala traz alguns manuais desenvolvidos para os cursos que lecciona, para professores e psicólogos, e materiais como uma boneca em crochet, semelhante à ilustração da capa do seu livro, uma menina sentada à chinês, num tapete, com uma rã – foi-lhe oferecida na Turquia, orgulha-se. Senta-te quietinho como uma rã é o título do seu livro, editado pela Lua de Papel, e é também o animal que gosta de usar como exemplo para os mais novos perceberem o que é o mindfulness.

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Debruçada sobre a sua mala vermelha procura uma caixa, de onde tira um globo de neve, agita-o e mostra-o ao PÚBLICO. Só se vê a neve, que em vez de branca é dourada. Pouco a pouco percebemos que há uma rã, semelhante à do livro, sentada no centro do globo. A nossa mente é como a neve enquanto esta não cai completamente no chão, confusa e que não nos deixa ver o essencial, com a ajuda do mindfulness é possível ver o batráquio, calmo, com um sorriso largo e um ar generoso. “Nas escolas, o mindfulness é uma necessidade para termos crianças saudáveis”, defende.

O que mudou, nos últimos anos, para que as nossas crianças estejam tão irrequietas, tenham problemas de hiperactividade e dificuldade de concentração?
Quando comecei a trabalhar com professores, estes confessavam sentir uma enorme diferença entre as crianças, de há 20 ou 30 anos para cá. As crianças estão inquietas, ansiosas e em stress. Os tempos mudaram muito rapidamente e as crianças sentem muita pressão, assim como se sentem sobrecarregadas de trabalho. É uma loucura como na Holanda há crianças com apenas 10 anos de idade com sintomas de burnout.

Sentem pressão para serem o quê?
Para serem mais inteligentes, para terem êxito, para serem melhores. Ouvem: “Trabalha mais, tens de alcançar mais, faz isto melhor, tens de ter boas notas, caso contrário nunca terás um bom trabalho...” Ouvem-no dos pais e dos professores. 

Porque sentem essa pressão, as crianças ficam ansiosas e, por isso, precisam de praticar mindfulness?
Essa é uma das razões. A outra é que as crianças têm sentimentos muito fortes como a tristeza, o medo, a raiva – claro que a felicidade também –, e não sabem lidar com eles. Lembro-me de a minha mãe, quando eu era criança, mandar-me para o quarto: “Vai para cima e quando conseguires agir com normalidade podes descer.” O que se passa é que muitas crianças não conseguem lidar com emoções fortes e é isso que as ensinamos a fazer [nas sessões de mindfulness].

Outra razão é a seguinte: muitos professores pedem aos alunos para se concentrarem, mas não os ensinam, apenas o dizem. E os miúdos não têm ideia do que é que isso significa e como é que se faz.

Mas nós, com essas idades, tínhamos ideia de como é que se fazia?
Também não. Mas hoje a pressão para alcançar algo é muito mais alta do que nessa altura. Nós também não sabíamos como fazê-lo e é interessante perceber como é que lidávamos com isso, mas hoje os miúdos não sabem concentrar-se, nem observar o seu mundo interior e estou convencida, não sou a única, que quando não estamos em contacto com o nosso mundo interior não podemos ser bem sucedidos no mundo exterior. É óbvio que quando não sabemos que existe um sentimento e esse pode provocar uma reacção exterior, quando não sabemos o modo como isso acontece então não sabemos porque o fazemos, desconhecemos o efeito da nossa reactividade. Portanto, com o mindfulness os miúdos aprendem a ser menos reactivos, que não precisam de reagir de imediato, mas que podem descobrir onde os sentimentos estão no seu corpo e depois de uma pausa, responder de maneira calma. 

A pesquisa mostra que partes importantes do nosso cérebro se alteram com a meditação, tal como mudam depois de situações de stress. Portanto, sabemos que o stress não ajuda a aprender e se a criança estiver focada aprende melhor, a sua memória melhora. 

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Com o livro de Eline Snel é possível ter acesso à audição de meditações guiadas online Miguel Manso

Não é um desafio pôr crianças que estão cheias de energia, a correr de um lado para o outro, sentadas, quietinhas como rãs, e concentradas?
Nas escolas onde estou a trabalhar, fazem isto uma vez por semana, meia hora. E diariamente durante dez minutos. As crianças demonstram um enorme interesse porque continuam muito próximas do seu ser natural. Eles sentem que isto é muito importante.

Quando me pediram para desenvolver exercícios para crianças foi essa a questão que me coloquei: como conseguir sentá-los? Mas depois fui para as escolas e pedi aos miúdos para me darem a sua opinião sobre a experiência e eles queriam continuar e achavam que uma vez por semana era pouco.

O que descobriram é que tinham uma necessidade esquecida que era a de chegar à calma, de estar calmo, e perceberam-no. Gostam. Estamos a fazê-lo não só na Holanda, mas em França, na Suíça, por exemplo, nas escolas, as crianças almoçam em silêncio, isso traz-lhes calma e permite-lhes descansar. É muito interessante que, depois do almoço, podem voltar a trabalhar porque descansaram.

E têm melhores resultados académicos?
Não é esse o objectivo, mas é o que está a acontecer porque as suas mentes acalmam, descansam e regressam ao trabalho. Os professores usam o globo de neve com a rã para que os alunos percebam que a nossa mente está distraída com todo o tipo de coisas que acontecem à nossa volta, mas se estivermos em silêncio, então tudo se torna mais claro e a nossa mente é capaz de aprender, de não reagir de imediato, de ser mais generoso. Com o mindfulness as crianças também aprendem a ser generosas.

Pedir-lhes para desligar do mundo exterior e concentrarem-se sobre si mesmas não é estar a educar crianças egoístas?
É precisamente o contrário e por isso é que uso a rã como metáfora porque quando a olhamos com muita atenção percebemos que está sentada muito quieta, mas que as suas pernas saltam muito alto, tal como a nossa mente – podemos estar aqui sentadas e a nossa mente estar muito longe –, e não exclui o mundo exterior porque quando uma mosca aparece, a rã apanha-a. Ou quando há perigo de um pássaro a comer, a rã salta para longe. Portanto, não ensinamos as crianças a excluir-se do mundo, mas a incluir e a incluirem-se a si mesmas.

Quando as crianças se familiarizam com os seus sentimentos e, simplesmente, os sentem, também compreendem os sentimentos dos outros em seu redor. Por exemplo, quando outro está muito zangado, uma criança que faça mindfulness pode dizer-lhe: “Pensa como a rã, respira por uns momentos e acalma-te.” Ensinamos-lhe a estarem mais próximas dos outros que estão em stress ou a sofrer de ansiedade e ajudá-los de imediato.

É terapêutico?
É um treino. A terapia tem sempre um objectivo e aqui não há esse propósito. Os professores dizem-me que através deste treino não se tornaram melhores professores, mas são melhores seres humanos. Ou seja, são pessoas que estão realmente em contacto com as crianças e não estão simplesmente preocupados em dar a matéria. Podemos saber muitíssimo bem como ensinar Matemática ou Geografia, mas se não virmos que temos crianças tristes porque os pais estão num processo de divórcio, então perdemos algo muito importante na educação. Um bom professor não é, por definição, um ser humano cuidador porque está sobrecarregado com um trabalho muito exigente, que se preocupa apenas em cumprir o programa, sem tempo para si próprio e para ver, realmente, as outras pessoas. E este é o cerne do mindfulness, a que preferimos chamar treino da atenção ou treino da consciência.

No livro, além dos exercícios para a prática do mindfulness, há a preocupação de ensinar os pais a serem pais?
Sim, como ensinamos os professores a ser melhores seres humanas em contexto de sala de aula, também há a mesma preocupação com os pais. 

Precisamos de aprender a ser pais, não basta o amor?
O amor basta quando está tudo bem, mas quando há um filho que sofre de alguma coisa – autismo, hiperactividade, cancro –, então são precisas ferramentas que nos ajudem a lidar com miúdos que não conseguem estar sentados, fogem da mesa de jantar, não se conseguem concentrar, gritam. E quando os pais também gritam, não ajudam a criança nem a relação. Portanto, enquanto pai ou mãe, é importante aprender a ter calma e a compreender que temos todo o tipo de sentimentos, que não podemos expressá-los de imediato, que muitos dos pensamentos que temos não são verdadeiros – os desastres que imaginamos não vão acontecer, são apenas medos. 

Então, em vez de os mandarmos para o quarto, como fazia a sua mãe, dizemos-lhes: “respira”?
Às vezes sim. Ajuda quando se agarra a criança até que se acalme e depois falar sobre os seus sentimentos. Perguntar-lhe em que parte do corpo está a sentir a raiva. O mindfulness não é uma panaceia para problemas psicológicos ou psiquiátricos. Os pais precisam de ter alguma sabedoria e bom senso para perceber do que é que os seus filhos precisam, se é necessária ajuda médica. Mas, na minha opinião, todos os pais beneficiam da prática da meditação porque nos mantém longe de estarmos constantemente preocupados, das mágoas, dos sentimentos confusos e mostramos às crianças que sabemos para onde ir. É importante que as crianças comecem a confiar nos seus pais, sintam que são vistas, sentidas e ouvidas pelos seus pais.

Todos devíamos praticar mindfulness?
Não digo todos, mas este é um treino que em termos académicos está muito estudado. Nunca houve tanta investigação sobre os benefícios da meditação, em termos físicos, mentais e emocionais, como actualmente. É um treino, que nos permite conhecermos-nos melhor. A conhecermos os nossos sentimentos e como estes estão ligados às nossas reacções físicas. Não é apenas meditação. 

O mindfulness contribui para o nosso bem-estar ou para a nossa saúde?
Não se pode separar uma coisa da outra. A nossa saúde está muito relacionada com o nosso bem-estar. Há pessoas que estão muito cansadas e não estão atentas a esse cansaço, mas não se sentem bem; e se estiverem demasiado cansadas durante demasiados anos poderão acabar por ficar doentes. Por isso, está tudo ligado.

Há um interesse crescente e a sociedade começa a exigir que o mindfulness faça parte dos currículos escolares. Por exemplo, na Holanda já há em várias escolas. Diariamente 7500 crianças fazem mindfulness, mas já há noutros países. Temos 2000 formadores nesta área, com formações de dois anos, são sobretudo psicólogos, terapeutas, professores. 

Em Portugal, a Ordem dos Médicos está preocupada com as terapias alternativas, a Ordem dos Psicólogos com o coaching e pedem a intervenção do Governo.
Têm medo de perder o seu ganha-pão?

O argumento é que são terapias que podem ser um risco para a saúde.
Já passamos por isso na Holanda, mas hoje é tão comum que as seguradoras pagam essas terapias, incluindo tratamentos de mindfulness. Os médicos estão a ser formados nesta área, faz parte do currículo, assim como do dos futuros pedagogos. Eu ensino nas universidades porque me foi pedido. É um obstáculo quando queremos mudar, há sempre desconfianças, por isso, é um caminho que têm de se fazer. Devagar. Quando é preciso mudar o sistema, é preciso mudar a nossa mente e isso é o mais difícil porque temos sempre a certeza que estamos certos.

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