Zeca Mendonça: “Decidi ir à guerra colonial por moeda ao ar”

No Verão de 1968, no Algarve, acompanhou o amigo Jorge Palma e cantou fado para estrangeiros mas nunca ousou o mesmo com os portugueses.

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Na "escadaria do poder" na sede do PSD dfc Dario Cruz

Faz agora sete anos, aceitou o desafio. Homem elegante e com história, contou histórias e fez a temida revelação: nunca escreveria as memórias, porque o partido, o PSD, sempre confiou nele. Lamentava que a política fosse agora menos espontânea. Foram as observações de um perito, em 8 de Abril de 2012, que republicamos depois da sua morte aos 70 anos. 

No primeiro dia do recente 34.º Congresso do PSD comemorou mais um aniversário. Com este conclave são 32 os congressos em que esteve. Já trabalhou com 17 presidentes do seu partido. Nos primórdios foi responsável da segurança. Agora, trata da imprensa. José Luís Mendonça Nunes, Zeca Mendonça, é discreto mas bom conversador. “Decidi ir à guerra [colonial] por moeda ao ar, saiu coroa...”, recorda, ao PÚBLICO.

“Já me desafiaram para as memórias, o partido sempre teve confiança em mim, pelo que não faria sentido escrevê-las”, relata Zeca Mendonça. Os segredos, que os há, ficarão guardados. O PSD é o território da sua profissão. Zeca é um dos funcionários de partido com mais anos de profissão dos que acederam aquele cargo após o 25 de Abril. Está entre os militantes de primeira hora e foi um dos primeiros cinco mil que subscreveram, em 1974, o pedido de legalização do então PPD. Acedeu a recordar histórias, percurso e episódios na sede da Rua São Caetano à Lapa.

Fala de forma pausada. “Meço as palavras, é a minha maneira de ser, se por acaso sou agressivo com alguém sou-o de forma consciente”, admite. Posa, com paciência e à-vontade na “escadaria do poder”, onde, uma a uma, de Sá Carneiro a Passos Coelho, estão as fotos dos sucessivos líderes. Move-se com o à-vontade de quem está “na sua segunda casa”. A mesma forma como, nos salões do poder ou nas reuniões do partido, encaminha dirigentes para o local exacto. Observem-no na televisão. É eficiente e discreto. Move-se com o à-vontade de quem pisou palcos. Antigo militante da Juventude Operária Católica, teve como encenador Manuel Lopes, fundador da CGTP que já faleceu. “Fazíamos teatro no Hospital de Arroios”, relembra. Um palco a centenas de metros da sua casa, na Almirante Reis, defronte do Café Império. Um bairro que o marcou.

“Era uma zona curiosa”, analisa: “A área da Alameda Afonso Henriques perto do Instituto Superior Técnico era de classe média-alta, onde eu vivia era média-baixa, à volta havia zonas populares e, depois estavam os cafés”. Nos anos 60, o café era centro de tertúlia, ponto de encontro. Os da Avenida de Roma eram frequentados por universitários. Do Técnico chegavam notícias de cargas policiais. “Na minha geração, a maioria dos jovens eram “do contra” devido à guerra. Tinha amigos com actividade política clandestina”, refere. “Amigos como Paulo Carvalho e Carlos Mendes, dos “Sheiks”, ou Jorge Palma, com o qual jantei há seis meses”, enumera.

Com Jorge Palma parte em 1968 à aventura para o Algarve. Entre Portimão e a Albufeira da histórica boite “Sete e Meio”. “Foram seis meses, as melhores férias da minha vida, por lá andavam também o Fernando Tordo e o Paco Bandeira, eu acompanhava o Jorge”, relata: “De vez em quando cantava fado para estrangeiros porque eles não percebiam, não me atrevia a cantar para portugueses”. Desses tempos, ficou com a certeza que as suecas eram um mito e que as inglesas eram mais simpáticas. Regressou a Lisboa de cabelos compridos. Que cortou para entrar no RAL1, posterior Ralis, onde deu instrução de tiro de obus. “Fui mobilizado para a Guiné como atirador por ter participado numa manifestação contra o regime, não tinha noção das consequências que tal me podia acarretar”, confessa. Foi o momento de uma opção: “Antes de embarcar fiquei uns dias no Porto, indeciso, se devia ir para a guerra ou para Paris ou Amesterdão, onde já estavam o Jorge Palma e o Júlio Hélder Moura Lucas, um amigo meu que era do MPLA”. A decisão foi tomada por moeda ao ar: “Estava num café, atirei a moeda, saiu coroa... fui à guerra”.

Cocktails molotov

Na Guiné, entre 1972 e 74, na zona sul controlada pelo PAIGC, convive com gente politizada. “O Francisco Temudo, o médico da companhia, que vinha da extrema-esquerda e estava lá castigado e o Guerra, que estudara na Sorbonne e que regressou a Portugal para ver a mãe que estava muito doente e teve de apresentar-se”, relata. “Então não pensava que a política viesse a ser a minha vida”, admite. Mas, concorda, “foram essas experiências que facilitam o relacionamento que tenho com os jornalistas”.

No regresso a Lisboa é convidado pelo seu amigo João Inácio Simões de Almeida para a segurança de um novo partido, o PPD: “Fazia vigilância à sede nacional na Duque de Loulé”. E também em comícios, como voluntário. Dos meses do “Verão Quente” de 1975 retém episódios: “Era o tempo das ameaças telefónicas, alguém chamou as minas e armadilhas que felizmente não chegaram a entrar no edifício porque o sétimo andar estava cheio de cocktails molotov”.

Desde 1977, ocupa-se da imprensa. “A actual mediatização é desgastante mas faz-se melhor jornalismo”, afirma. A política também mudou: “O tempo fez que a política se tornasse menos espontânea”. Reflexões de um observador e perito. Zeca Mendonça.

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