Os gambozinos de Sua Majestade

Para que fique claro, o gambozino nesta metáfora não é o "Brexit". O "Brexit", entendido como a saída do Reino Unido da União Europeia, existe. O que não existe é o tipo de "Brexit" específico que foi prometido aos britânicos.

Hoje, 29 de março, seria Dia de “Brexit”. Mas como os argumentistas desta série política decidiram esticar um pouco mais o suspense, o dia do “Brexit” será afinal o próximo dia 12 de abril. Ou o próximo dia 22 de maio. A não ser que haja um adiamento longo. Na verdade, ninguém sabe. Nem os argumentistas. Suspeito que eles vão inventando as peripécias futuras à medida que os episódios vão saindo. Mas a série é boa.

Na última reviravolta da atual temporada, a Câmara dos Comuns reuniu-se para uma série de votos indicativos para saber como tirar o Reino do Unido do impasse em que está metido. Todas as opções estavam em cima da mesa. Mas como os argumentistas da série são endiabrados, no momento de contar os votos veio a surpresa. O parlamento rejeitou todas as opções. Todas. Aparentemente, a Câmara dos Comuns não quer ficar na UE, mas também não quer sair da UE, não quer adiar a saída da UE, mas também não quer sair já, não quer passar a ter um estatuto igual ao da Noruega, nem apenas uma união aduaneira, nem um mercado comum, nem o contrário disso, nem sequer a versão do Partido Trabalhista que consistia em sair da UE tendo direito de voto nos acordos comerciais futuros da UE, nem fazer um novo referendo, nem sair sem acordo. Assim acabou o episódio de anteontem.

No episódio que passa hoje mais tarde, a primeira-ministra Theresa May voltará à carga tentando pela terceira vez aprovar o seu acordo de saída. Se esse acordo for de novo rejeitado, a pergunta legítima será: mas que quer afinal o parlamento britânico? E a resposta certa é: um gambozino.

Ou seja, chegou aquele momento de todas as séries em que os argumentistas, depois de terem esticado a narrativa até aos limites da verosimilhança, acabam a ter de despejar uma nave de extraterrestres no meio de um episódio porque já não conseguem imaginar outra forma de resolver a intriga. Sendo eu um rapaz que cresceu numa aldeia, prefiro antes explicar o que é um gambozino, uma vez que aprendi recentemente — para meu espanto — que já nem toda a gente sabe do que se trata. Um gambozino é, simplesmente, um animal que não existe. Quando eu era miúdo, as histórias sobre a suposta criatura serviam para enganar os incautos — outras crianças, gentes da cidade, turistas — e, na melhor das hipóteses, levá-los a sair de casa numa caçada noturna em que se expunham ao ridículo fazendo ruídos estranhos e gestos caricatos com uma lanterna. Para fazer crescer junto do incauto a expectativa de caçar um gambozino, os atributos da criatura tinham de ir crescendo em complexidade e estranheza. Para os meus tios que gostavam dessa piada, o gambozino poderia ser, por exemplo, um bicho com cauda de raposa, penas de pavão, olhos de sapo e gorgolejar de perú — até ao momento, muitas vezes demorado, em que o alvo da piada finalmente percebesse que um animal com aquelas características não existia nem poderia existir.

Pois bem. O que foi pedido à primeira-ministra britânica foi que caçasse um gambozino. E ela aceitou caçar um gambozino porque o eleitorado britânico votou em referendo convencido que o gambozino existia, porque os políticos mais populares do país convenceram o eleitorado que os gambozinos não só existem como são fáceis de apanhar.

Para que fique claro, o gambozino nesta metáfora não é o “Brexit”. O “Brexit”, entendido como a saída do Reino Unido da União Europeia, existe. O que não existe é o tipo de “Brexit” específico que foi prometido aos britânicos: o “Brexit” que aumenta ao mesmo tempo a soberania, o poder de decisão, a prosperidade e a influência do Reino Unido no mundo. Esse “Brexit” imaginário é o gambozino. Em todas as versões reais do “Brexit”, perde-se qualquer uma das características imaginadas dele. Numa versão do “Brexit”, o Reino Unido não partilha a sua soberania com mais ninguém, mas fica menos poderoso por isso (ou, por outras palavras, aumenta em retórica de soberania o que perde em soberania real). Noutra versão, mantém o acesso ao mercado único que é a base de boa parte da sua prosperidade, mas tem de seguir as regras do mercado único. E por aí adiante.

Ao contrário do que alguns pretendem acreditar, mesmo nesta altura tão tardia do campeonato, isto não acontece porque a UE tenha sido especialmente maldosa nas negociações, ou porque tenha querido punir o Reino Unido, ou porque haja um plano maquiavélico para que os britânicos fiquem na UE. A maior parte das coisas que estão no acordo de saída que Theresa May tentará fazer aprovar no seu parlamento — incluído o famoso backstop por causa da Irlanda do Norte — têm origem em linhas vermelhas dos próprios britânicos.

A razão porque nenhuma escolha parece agradável neste momento é simples: é que não há gambozinos. E não se pode exigir aos europeus que inventem gambozinos para satisfazer quem era euro-cético mas gambozino-crédulo.

Depois de dois anos à caça, agora é preciso escolher. Se o parlamento britânico quiser um bicho com cauda de raposa, arranja-se uma raposa. Se o parlamento britânico quiser um bicho com penas de pavão, arranja-se um pavão. Se o parlamento britânico quiser um bicho com olhos de sapo, arranja-se um sapo. Se o parlamento britânico quiser um bicho com todas as características anteriores, só se pode arranjar um boneco empalhado e chamar-lhe gambozino. É insatisfatório? Sim. Mas a culpa não é de quem avisou que os gambozinos não existiam.

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