Cores da vida, dores da arte

A estreia de uma nova sinfonia de António Pinho Vargas e a revisitação da obra Six Portraits of Pain acompanhada de um filme de Teresa Villaverde foram recebidos com entusiasmo pelo público que se deslocou ao Centro Cultural de Belém no passado domingo.

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Marcelo Albuquerque / Metropolitana
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O concerto abriu com Sinfonia (subjectiva), uma nova peça para orquestra de António Pinho Vargas encomendada pelo Centro Cultural de Belém, e que integrou o ciclo Sete rosas mais tarde - ciclo sobre a solidão. Uma sinfonia de estrutura tradicional, à primeira vista, com os seus quatro andamentos: um andamento enérgico inicial — sulla violenza; um andamento mais lento — elegia (d'amore); um scherzo: l'ironia (improbabile); e um andamento final (finale), conclusivo. Os títulos dos andamentos sugerem que há ali questões de violência, amor, ironia. E há, de facto. Mas não se trata de uma sinfonia criada para ilustrar conceitos: o encontro das palavras e das ideias com a música faz-se subjectivamente, também para o ouvinte. Defesa ardente da subjectividade — e da tristeza, porque não? — como possibilidade de resistência? Do indivíduo como potência que pode desarticular dogmas e afirmar a sua singularidade? Uma ética feita música?

O que parece claro é que há, nesta Sinfonia (subjectiva) uma tentativa de não desistir de uma possível comunicação com o público, de não cortar os laços, sem perder a voz própria, as suas convicções. Coisa que terá acontecido, se avaliarmos apenas pelos generosos aplausos do público. Mas não podemos ficar só à superfície. Que violência é aquela, para além da força que a percussão abundante imprime ao primeiro andamento? De que amor se trata quando as cordas são a trama de base, mas onde surgem chamamentos de trompetes esperançosos mas com surdina, oboés, clarinetes, flautas, até que uma nova violência desponta daquele amor que se extingue de novo em tom grave e doloroso? E aquela ironia, para além do jogo rítmico e tímbrico do scherzo, em que medida se põe ela a gozar com o mundo e a dar-lhe leveza para dar a volta ao insuportável? A sombra da morte espreita a certa altura em trombones e tantãs, ou serão questões de consciência, mares de pensamento?

Apesar das dores, uma nova alegria se entrevê nesta Sinfonia (subjectiva), onde parece que tudo vale a pena outra vez para quem não desiste de escrever música.

Pinho Vargas tem-se questionado na sua obra sobre a insatisfação permanente do artista. Six portraits of pain é uma peça onde esse problema está agudamente presente – mas sob a forma de “retratos”, que na verdade não são retratos sonoros de escritores, mas ecos de textos e traços de vidas que marcaram o próprio compositor. Um texto apenas se ouve mesmo, um fragmento da escritora Anna Akhmatova. Os outros ficam a “carregar baterias” dentro da música, com excertos que apenas os intérpretes conhecem. De Espinosa (ou melhor, das leituras de Deleuze do autor da Ética), de Akhmatova, de Thomas Bernhard, de Manuel Gusmão e de Paul Celan. Seis momentos e uma Coda dedicada a este último. Manuel Gusmão é um poeta cúmplice e amigo de Pinho Vargas (e autor do libreto da ópera Os dias levantados, há mais de vinte anos atrás). Os outros escritores – Akhmatova, Bernhard, Celan – são gente cujas dores e desesperos atravessam vida e obra. Perseguidos (pelo nazismo uns, pelo estalinismo ela), odiados ou injuriados, eles escreveram pessimismos radicais enquanto deixavam os outros ver também uma ponta do véu da alegria possível – na sua subjectividade tantas vezes atacada como fraqueza ou ofensa moral. A força de Six portraits of pain vem de tudo isto “traduzido em música” pelo compositor, mas veio também (nesta tarde de Primavera) de intérpretes excelentes como foram Pavel Gomziakov, no violoncelo, e toda a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida por Pedro Amaral. Destaque também para Ana Pereira, no violino, que dialoga intensamente com o violoncelo protagonista, a ponto de se tornar uma voz central (mas “ao lado”) nestes “retratos de dor”.

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O filme de Teresa Villaverde, belo e abstracto, deixa a música surgir atrás das ondas, e fere-nos os olhos – colocando interrogações — sem se impor nem sobrepor. E do encontro com a imagem surge uma poética diferente para esta composição. E uma ética que espreita, da força subjectiva da invenção musical e cinematográfica. No fim não pudemos seguir o pessimismo de Thomas Bernhard quando dizia que “nada de bom pode vir dos aplausos”.

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