“Já não há energia para a palavra ‘feminista’”

Jessa Crispin, autora de Why I Am Not a Feminist: A Feminist Manifesto, esteve em Lisboa para participar no ciclo “Conversas com História”, com Raquel Varela. A norte-americana alerta para a incapacidade de ouvirmos as pessoas que ficaram para trás, à medida que as mentalidades vão mudando.

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Rui Gaudêncio

Jessa Crispin escreveu um manifesto feminista para explicar por que razão não é feminista. Em Why I Am Not a Feminist: A Feminist Manifesto, editado em 2017, defende que o movimento perdeu significado. Que à medida que o feminismo foi sendo adoptado universalmente deixou de ser revolucionário e passou a representar uma série de banalidades. Crispin acredita que devíamos estar mais focados nas mudanças estruturais, a nível da sociedade como um todo, e não no chavão do empoderamento pessoal.

Em entrevista ao PÚBLICO, Crispin diz que precisamos de ter conversas mais profundas. Para a autora, a palavra feminismo é usada como um atalho, uma espécie de muleta para não termos de perceber aquilo em que acreditamos. Ao mesmo tempo, alerta para a incapacidade de ouvirmos as pessoas que ficaram para trás, à medida que as mentalidades vão mudando. “A sociedade, particularmente em questões de papéis de género e sexualidade, muda tão rápido. Não houve tempo para as pessoas lidarem com a forma como foram socializadas.”

A fundadora das publicações Bookslut.com e spoliamag.com esteve no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, na quinta-feira, num debate com a historiadora Raquel Varela. A sessão faz parte do ciclo “Conversas com História”, que já recebeu, desde o início do ano, o economista Michael Roberts e o professor de História Peyman Jafari.

O que é que a traz a Lisboa?
A Raquel Varela contactou-me depois de alguns artigos que escrevi sobre o movimento #MeToo. É um daqueles assuntos complicados que não é tratado de uma forma complicada. Devia haver um diálogo mais amplo sobre o que significa justiça de género nesta altura. Poucas pessoas querem tê-lo.

Quais são os temas que deveríamos abordar de forma mais aprofundada?
Deveríamos pensar sobre que sociedade queremos ter. Queremos ter uma sociedade com um sistema de justiça incapaz de lidar com conflitos interpessoais? Queremos uma sociedade com base em retribuição e vingança, em vez de justiça? A conversa não é só o que fazemos com este ou aquele homem [que terá assediado ou abusado sexualmente]. É como lidamos com coisas como o nosso sistema de justiça completamente quebrado. Estamos tão focados em punição e vingança, em vez de reabilitação. Quando temos uma conversa à volta de “isto é uma má pessoa, isto é uma boa pessoa” estamos a negligenciar falar sobre os problemas sistémicos que criaram a situação.

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"Why I Am Not a Feminist: A Feminist Manifesto" foi editadp em 2017

Onde é que surgem os diálogos mais produtivos?
Não sei se estamos a ter uma conversa produtiva. As redes sociais, as opiniões impedem-nos de ter verdadeiras conversas. Toda a gente tem uma opinião sobre tudo. E toda a gente pode expressar essa opinião. Excelente — acho, sim, que é uma melhoria em relação à sociedade em que a informação é controlada [gate kept society], ou a sociedade de media que tínhamos antes. Contudo, só porque temos uma voz não quer dizer que tenhamos algo para dizer. Com todo o barulho, é difícil ter uma conversa.

O que há entre esses dois cenários?
Há a questão de como é que nos livramos dos nazis que estão a tomar o controlo das redes sociais. Como é que pensamos sobre moderadores? Com o enorme volume de informação, é um trabalho impossível. 

É comum espalharem-se pelas redes sociais polémicas à volta de diferentes situações — ainda esta semana vimos isso com a colecção sem género da Zippy. Estas situações são benéficas para reflectirmos sobre os assuntos subjacentes ou só nos causam fadiga?
Acho que o principal problema é que não há árbitro nessas conversas. A regra do público intelectual está em falta. Mesmo em França, já não há quase público intelectual. No que toca a pensar sobre as partes mais complicadas destas questões há alguns escritores que estão dispostos a olhar para essa complicação. É muito mais fácil e gera muito mais tráfico estar só indignado. As publicações que ainda têm algum poder (como o Guardian e o New York Times) têm de ser mais responsáveis.

Ou seja, estes debates podem ser produtivos, dependendo da abordagem?
Sim, temos de ter um formato mais longo. E temos de ter... não queria usar a palavra ‘autoridade’, mas é uma boa ideia ter intelectuais. Ter pessoas que estudaram estas coisas e pensaram sobre elas profundamente — e não pessoas que estão apenas a reagir. Se virmos qualquer um dos programas de televisão dos EUA é só pessoas a gritar umas com as outras. Não há conversa. Não há nuance. Só posições sedimentadas. A sociedade, particularmente em questões como as de papel de género e sexualidade, muda tão rápido. E não houve tempo para as pessoas lidarem com a forma como foram socializadas. É uma falha da esquerda assumir que toda a gente deveria estar imediatamente a par.

Acha que há falta de compaixão?
Sim! Acho que há um sentido de superioridade: “Eu percebo isto, tu não compreendes.” Eu venho de um contexto muito conservador. A minha família e as pessoas da minha cidade vêem programas noticiosos conservadores. Acham que mulheres trans poderem usar a casa de banho pública é uma atrocidade. Estão a ser alimentadas intelectualmente por idiotas nos programas de notícia de cabo. E ninguém se sentou e lhes explicou a situação.

Além das redes sociais, considera, que os activistas deveriam ser mais compreensivos?
Sim, houve um caso na América, há uns meses, em que a Esquire fez o perfil de um rapaz de 17 anos do [estado do] Minnesota. E as pessoas passaram-se da cabeça. É um rapaz heterossexual branco, rural, de um estado republicano. Perguntaram-lhe o que acha sobre o #MeToo, controlo de armas, etc. Ele gosta de armas e vai à caça, por isso tinha um ponto de vista muito conservador. Não percebeu o #MeToo, achou que era um movimento estúpido. Por tantas conversas acontecerem em zonas urbanas, deveríamos ver se estão a espalhar-se pelas camadas menos informadas. Se está a passar da bolha urbana.

E alguém está a fazer isso?
Só o facto de toda a gente ficar imediatamente zangada com a Esquire por falar com este rapaz foi bastante revelador para mim. [As pessoas consideram que] nem sequer deveríamos ouvir o que tem para dizer, que estão demasiado representados na nossa cultura. Não estão de forma alguma! Eu era aquele adolescente. Eu cresci numa cidade conservadora. Eu era estúpida em relação a vários tópicos, até me ter obrigado a aprender. Mas nem toda a gente tem tempo para isso. Ou vontade. Especialmente se viveres sempre no mesmo sítio e toda a gente concordar contigo acerca da tua opinião. Acho que o facto de que toda a gente estava chateada com a Esquire diz-nos que não queremos ter uma conversa, só queremos que concordem connosco.

Partindo do título de um dos seus livros, não deveríamos todos ser feministas?
Acho que já não há energia para a palavra ‘feminista’. Foi tão apropriada e indevidamente utilizada que não temos de a recuperar. Podemos só abandoná-la... Não sou muito fã de rótulos, não acho que sejam úteis.

Nem em termos práticos, por uma questão de organização, de discurso?
Talvez… Mas acho que as pessoas usam estas palavras como atalhos, de forma a não terem de perceber aquilo em que acreditam. Feminismo significa um milhão de coisas diferentes. Por isso, talvez seja melhor dizeres o que achas que significa. Acho que estas palavras metem-se no caminho do diálogo.

Há quem fuja da palavra por a associar com extremismo. Mas a sua razão para não a usar é diferente?
Sim, não é suficientemente radical! (risos) Nos anos 1980, quando as feministas estavam a ser culpadas por furacões e tremores de terra, [quando pensavam que] Deus está a castigar-nos por causa do feminismo… Essa era uma boa altura para te chamares feminista. Agora que está em todas as T-shirts não estás a ter um ponto de vista provocador.

Mas não há força nos números, no facto de serem cada vez mais?
Vejo que muitas mulheres se intitulam feministas há décadas e isso não criou um mundo melhor. Estou interessada no conteúdo, não no título. Estou preocupada com um sistema político que está a virar-se para a direita. Um bando de mulheres a chamarem-se feministas não impediu que isso acontecesse.

Mas essa ubiquidade não faz com que haja uma maior tomada de consciência?
A palavra mete-se pelo caminho. As pessoas têm uma reacção tão negativa à palavra feminista. ‘És feminista?’ Não, claro que não!’ ‘Acreditas que toda a gente deve ter direito iguais?’ ‘Sim!’ Não há necessidade de alguém dizer ‘então isso faz de ti feminista!’ Não é um momento “gotcha” [apanhei-te]! O que estamos a fazer, essencialmente, é a criar divisões entre nós. Estava a ter esta conversa com uma feminista e o Papa tinha falado sobre injustiças económicas. Pela primeira vez apercebi-me de que se calhar não odeio o Papa. E a razão para odiar o Papa era que este era pró-vida e não se considera feminista. Mas há coisas na tradição religiosa nas quais podemos encontrar pontos em comum. Não acho que seja útil rejeitar uma religião inteira ou uma figura religiosa que tem imensos seguidores só porque não concordam contigo em alguns temas. [Há uma certa] atitude de que não existe nada para a sociedade progressista na religião ou na espiritualidade, mas a história do pensamento cristão acerca do aborto mudou mil vezes. Não é uma posição fixa. 

Ao mesmo tempo, há questões radicais que considera que devemos recuperar?
Diria desmantelar o actual sistema económico. Para mim a questão principal, especialmente nos Estados Unidos, é recuperar o conceito de sociedade. Não somos só aglutinados num casal ou numa família. Temos obrigações para com todos, mas não sei como é que isso se pode tornar realidade, porque é uma mentalidade tão diferente da actual. Há programas governamentais que podem ser postos em prática: segurança social, cuidado médico universal, fronteiras abertas... O conceito com o qual continuo a bater com a cabeça é como o casamento deveria ser abolido. A divisão de pessoas em famílias nucleares é a maior barreira de nos re-imaginarmos enquanto sociedade.

Porquê?
Porque o casamento e a família nuclear são sobretudo utilizados como consolidação de capital. Partilhas recursos e atenção só com uma pessoa. Se olharmos para as estatísticas, a pessoa solteira tem mais hipóteses de morrer. E podemos olhar para estudos que mostram que as mulheres que se casam começam imediatamente a isolar as amigas solteiras, começam a votar de forma mais conservadora, começam a criar esta mentalidade: ‘Estas são as pessoas que interessam e não preciso de cuidar de mais ninguém’ — seja financeiramente ou em termos de saúde. É uma forma de nos acasularmos e nos anestesiarmos às necessidades de outros.

Mas abolir o casamento, em teoria, não seria retirar uma liberdade ou um direito a quem se quer casar?
As pessoas podem ter qualquer relacionamento. Mas tantos direitos são filtrados através do casamento que este não é essencialmente uma relação entre duas pessoas, mas um contrato com o Estado.

Por isso, acha injusto para quem não se casa haver pessoas que se casam?
Sim, altamente! Se te casas, tens acesso a seguro de saúde, imigração, ajuda de impostos, mil direitos que não estão acessíveis aos solteiros. É uma injustiça inacreditável a ideia de que vamos reparar as coisas ao deixar pessoas gay casar. Ainda ficam de fora todas as pessoas que não se podem ou não vão casar.

Costuma defender as mudanças sistémicas acima das conquistas a nível pessoal. Não corremos o risco de legislar sem deixar que a sociedade consiga acompanhar esse ritmo — como há pouco falava?
Sim, tem de ser par a par. A legalização do aborto na América, que aconteceu do topo para baixo, não tem sido excelente. Há especialistas que dizem que Roe v. Wade [o processo avaliado pelo Supremo Tribunal que legalizou o aborto em todo o país, em 1973] irá à vida dentro dos próximos três anos. Que já há casos a movimentarem-se pelo sistema penal que vão chegar ao Supremo Tribunal e que este vai revogá-lo e tornar o aborto ilegal outra vez. O que ao menos permitiria que acontecesse o diálogo que não aconteceu nos anos 1970. Talvez pudéssemos ter uma solução mais permanente. Estas coisas são importantes. Dizer à sociedade como deveria funcionar sem o acordo de ninguém é obviamente tirania. Mas eu não estou numa posição de poder: estou só a atirar ideias.

Há feministas que exigem demasiado de outras feministas?
Quando o meu manifesto foi editado, recebi acusações de que estava a ser injusta para com as outras feministas, que estava a ser demasiado intransigente. Acredito que todos devemos tentar reduzir o sofrimento no mundo enquanto cá estamos. e acho que o projecto feminista faz parte disso. Só estou a pedir mais consciencialização. Deveríamos pensar em participar na sociedade para a tornar melhor. Não apenas fazer piadas nas redes sociais.

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