Ungulani Ba Ka Khosa: “Acho que teremos de ter uma nova Beira, noutro sítio”

Se tivesse que escrever um livro sobre o que o Idai fez a Moçambique, talvez lhe chamasse “Se Deus existe estaria distraído”. O escritor diz que esta é a oportunidade para os políticos porem os pés no chão e verem a pobreza do campo e a pobreza urbana. “Quarenta e tal anos depois da independência o que somos? O que queremos ser?”

Foto
Ba Ka Khosa: "Há um Moçambique antes do ciclone e tem de haver um Moçambique depois do ciclone" Daniel Rocha

Ungulani Ba Ka Khosa é uma referência literária de Moçambique e de África. O seu Ualalapi foi escolhido em 2016 como um dos cem melhores romances da literatura africana do século XX. Em viagem de Maputo para Lisboa, a convite da organização do Travessia de Letras, encontro sobre literatura infanto-juvenil no espaço dos países de língua portuguesa, que se realiza este fim-de-semana em Oeiras, falou ao PÚBLICO, no avião, sobre os efeitos do ciclone Idai e a tragédia que assolou o centro de Moçambique, e em particular a cidade da Beira.

Só faltava um ciclone para acentuar ainda mais as desgraças de Moçambique?

Não só para acentuar, mas, acima de tudo, para mostrar a todos nós aquilo de que já tínhamos a noção, a da existência de grandes desigualdades, pobreza extrema. Este ciclone creio que foi um grande sinal para vermos que, passados 40 e tal anos da independência, chegou a altura de olharmos para nós porque isto não pode continuar assim. Tudo o que pôde ver no terreno in loco tocou-nos a todos, não deixou ninguém indiferente. É um acontecimento que vai marcar para todo o sempre: terá que haver um Moçambique antes e um Moçambique depois do ciclone.

O Governo e os políticos moçambicanos em geral saberão tirar as ilações desta tragédia?

É a grande oportunidade para aquilo que a gente chama de sociedade civil começar a vir ao de cima e tomar consciência do que está a acontecer. Gradualmente, os políticos têm de colocar os pés no chão e verem, realmente, não só a pobreza do campo, como a pobreza urbana, naquela faixa a que o Luandino chamava entre o asfalto e a areia, onde as diferenças estão a tornar-se cada vez mais aguçadas. E isso toca-nos a todos. Podia escrever qualquer coisa…

Se fosse escrever um livro ou um conto sobre o que aconteceu na Beira e no centro do país como é que começaria?

Não sei, mas talvez o título fosse “Se Deus existe estaria distraído”. Mas, para lhe ser sincero, a realidade ultrapassa toda a imaginação.

O que pensou ao ver as imagens de destruição na Beira?

Fiquei totalmente desolado. Quarenta e tal anos depois da independência o que somos? O que queremos ser? Foram as questões que me vieram logo à cabeça.

O Governo de Moçambique tem capacidade para lidar com uma catástrofe desta dimensão?

Esse lado pragmático que assistimos nos últimos tempos, está a levar a que este Governo ponha os pés no chão e eu acredito, naquela nossa maneira moçambicana, que há um quê de esperança de que este Governo possa dar passos positivos nesse sentido.

E a Beira, tem capacidade para recuperar de uma tragédia desta dimensão?

Acho que teremos de ter uma nova Beira, noutro sítio. Tendo em conta a situação geográfica da Beira, o facto de estar abaixo do nível das águas do mar, face a estas mudanças climáticas que tornarão cíclicos estes fenómenos climáticos, é altura de o Governo programar uma cidade noutros quadrantes, depois do Dondo ou noutro lugar.

A cidade da Beira devia mudar de sítio?

Acho que sim, acho que a Beira devia mudar, não há capacidade técnica daquela cidade poder aguentar-se com estas mudanças climáticas a que estamos a assistir no mundo.

José Eduardo Agualusa causou polémica ao dizer que esta ajuda humanitária estrangeira que está a chegar dos Estados Unidos, da Europa, não era na verdade ajuda humanitária, mas indemnizações devidas a Moçambique por essas regiões contribuírem para as alterações climáticas que provocam estes fenómenos naturais extremos. Está de acordo?

Não entro muito nesse nível. Perante uma catástrofe humana, todos nós somos chamados a ir ao encontro do nosso íntimo. Sobre todo esse outro nível especulativo estou um pouco fora, estou mais ao nível humano. Acho que toda essa ajuda, toda essa entrega, de todos os quadrantes – o empenho das pessoas – é um reflexo, não só para Moçambique, mas para todo o mundo. Independentemente de encontrarmos culpados, a criação do mundo foi uma criação humana e eu distancio-me dessas especulações teóricas.

Muita gente na Beira, estrangeiros, moçambicanos de fora e beirenses disseram que esta ajuda humanitária não vai chegar a quem precisa, que acabaria a encher os bolsos de alguém, a ser vendida nos mercados. Não é triste para Moçambique que na cabeça das pessoas esteja sempre essa possibilidade?

Essa presunção existe face a fenómenos recentes que assistimos de desvio de fundos públicos, de utilização de instituições públicas para fins pessoais. Há um certo cepticismo. Mas acredito que, perante esta situação catastrófica nunca vista, o ser humano tem uma parte de si capaz de se impor ao lado negativo e penso que podemos assistir a uma pequena reviravolta. É por isso que eu digo que há um Moçambique antes do ciclone e tem de haver um Moçambique depois do ciclone.

O caso do ex-ministro das Finanças moçambicano, Manuel Chang (detido na África do Sul a pedido dos EUA e a aguardar o fim do processo de extradição), e da dívida pública escondida prejudicou muito a imagem externa de Moçambique?

Quando se vai lá fora e dizemos que somos de Moçambique, há toda uma imagem negativa que se tem do país, apesar de a corrupção ser uma coisa generalizada, em todos os quadrantes e em todas as latitudes. Mas a morosidade do poder judicial em resolver as questões e termos de assistir ao poder judicial americano a ir à frente e depois irmos atrás, tudo isso levanta esse tipo de suspeição. Mas depois das águas se acalmarem, vamos poder ver que tipo de reflexão o poder público, o poder privado e a sociedade civil irão fazer. Vamos pensar o que queremos para Moçambique.

Faço-lhe a pergunta de forma directa: Moçambique é um país de corruptos?

Não acredito nisso, Moçambique, como qualquer outro país, tem muita corrupção, a permissividade para que os corruptos possam passear tranquilamente pelas artérias é que desgasta as pessoas. Mas, a partir deste momento, e com essas tentativas ainda meio ténues do poder judicial, todos vamos acordar para a ideia de que já tocámos o fundo, mais do que isto é impossível.

Este ano é ano de eleições, considera que a Frelimo irá aproveitar toda esta coordenação da ajuda humanitária para tirar dividendos políticos?

As pessoas sabem muito bem onde colocar o seu voto, por mais malabarismos políticos que possam existir. Mesmo no Moçambique profundo, nota-se que já há uma consciência, são 40 e tal e anos de independência, 40 e tal anos de várias experiências. Hoje até uma criança de dez ou 12 anos já se aventura a fazer análises políticas, o que significa que os políticos terão de se acautelar. A partir de agora vamos ver que Moçambique iremos ter.

Sugerir correcção