A miséria ortográfica nacional e o fulgor das línguas do mundo

A par da miséria ortográfica nacional, há sempre algo que nos alenta. Como o livro Palavras Que o Português Deu ao Mundo, de Marco Neves.

A crer no que se anuncia no planeamento das comissões parlamentares, no site da Assembleia da República, vai reunir-se esta quinta-feira o Grupo de Trabalho para Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. Temas? “1) Discussão do processo associado à conclusão dos trabalhos. 2) Outros assuntos.” Está tudo descrito, sala (4) e hora (14h), sendo que isto se faz no âmbito da Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto.

Para lá do palavreado inócuo inerente a estas coisas, o que está em causa é uma velha pecha que continua sem resolução: o malfadado “acordo ortográfico” (com aspas, pois é desacordo e desortográfico, como a realidade vem provando há anos sem que a desmintam) de 1990. E como vai, então, a “avaliação do impacto da aplicação” do dito? Havemos de saber, um destes dias, que é para isso que as comissões servem: para avaliar e prestar contas. Confiemos nisso.

Mas enquanto daí pouco mais se sabe, o dia-a-dia espelha, sem grande esforço, o “impacto da aplicação” em comunicados, jornais, televisões, livros e todo e qualquer papel onde surjam letras agrupadas em palavras. Dos muitos exemplos, aqui ficam alguns, recentes, recolhidos e documentados com os originais por fontes atentas (como Francisco Miguel Valada, no blogue Aventar, ou os Tradutores Contra o Acordo Ortográfico, a quem o Português muito deve).

Comecemos pelos oficiais. Uma nota da Presidência da República sobre Pedrógão Grande (2 de Março), seguindo o “AO” (“afetados”, “junho”), usa por duas vezes a palavra “contato” em lugar de “contacto”: “não manteve qualquer contato” (3.º parágrafo) e “não teve nenhum contato” (4.º parágrafo). Ah, porque tem dupla grafia… Errado, não tem. Se forem ao IILP, ao vocabulário para Portugal, terão para “contato” esta resposta: “Palavra não encontrada”. Então como a encontrou a PR? Da mesma maneira que a encontram outras criaturas que se apressam a “contatar” toda a gente (“aqui vai o meu contato”), num tatibitate derivado da destruição em massa das consoantes. No Brasil é “contato”, sim. Mas aqui é contacto, certo?

Por isso, mais uma vez: duas variantes da língua, duas ortografias. Hoje, como sempre. É difícil entender isto? É. Veja-se o Diário da República, perito em assassinatos avulsos de letras. Além das palavras do costume, essas abençoadas pelo “AO” (“janeiro”, “março”, “efetivo”, “respetivas”, “eletrónico”, etc.), o DR n.º 52 (2.ª série) de 14 de Março tem duas vezes “contato” e, num mesmo parágrafo, “factos” e “fatos”: “documentos comprovativos dos factos” (correcto) e “os fatos curriculares”. Não se refere, como se entende lendo o texto, à indumentária usada na profissão em causa, mas a factos como “acção ou acontecimento”, palavra da qual esta gente consegue fazer derivar, sem uma ponta de vergonha, “fator”, “fatorial”, “fatura” ou “faturar”, dando as palavras com C por “não encontradas” (IILP)!

Mas a salada ortográfica é constante, misturando-se a eito a pseudo-ortografia do “AO”, a ortografia de 1945 (em vigor por lei, mas dita “antiga”) e subtracções avulsas de letras ao sabor do momento e da ignorância. Por exemplo: na convocatória para o lançamento de mais um livro de Pitum Keil do Amaral (Crónicas da Província, Para Arquitectos Mas Não Só) a Ordem dos Arquitectos vem escrita com C e sem C (“Arquitetos”). No entanto, a própria Ordem é mesmo dos Arquitectos e usa a palavra com C nos seus textos. Em todos? Quase. Porque, no topo direito do seu site, vem o “Portal dos Arquitetos.” E viva a diversidade!

Mais um absurdo: a “tradução” em acordês para o European Council of Optometry and Optics (ECOO) é Conselho Europeu de Optometria e… Ótica. Que bons ouvidos o vejam! Apesar disto, a Associação de Profissionais Licenciados de Optometria (APLO), numa carta ao Parlamento escrita com o “AO”, mantém no cabeçalho a palavra “Óptica”, e por duas vezes. Podem dizer: é uma fase de transição, há-de passar. Não, há-de agravar-se. Porque é esta “transição” que tem deformado, até à caricatura, o português escrito. Leiam e comprovem.

A par da miséria ortográfica nacional, há sempre algo que nos alenta. O mais recente livro do tradutor, revisor e professor Marco Neves, Palavras Que o Português Deu ao Mundo (ed. Guerra & Paz), propondo-nos “viagens por sete mares e 80 línguas”, é mais um brilhante ensaio, não só sobre a origem de muitas palavras e a sua difusão e transmutação pelo globo, como a reafirmação de que as línguas são corpos vivos que rejeitam espartilhos artificiais e impõem a sua lei para lá das conveniências, políticas ou outras. Escrito em português europeu e sem submissão ao “AO” (que o autor rejeita, com argumentos sólidos), o livro mostra como as línguas se cruzam e desenvolvem por caminhos seus, e que nem a lógica imperialista de que só as 5 ou 6 mais fortes sobreviverão nos tira o prazer de saber que milhares de línguas e dialectos sobrevivem há séculos, na sua senda de mudança, e que todas elas nos contam histórias de países, cidades ou aldeias; e que a isso se chama Cultura, com C bem grande.

Não é outra a justificação dessa imensa variedade de sons que povoa o planeta. O resto é ruído, alentado por oportunistas e arautos de “unificações” e indesejáveis supremacias.

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