O estranho caso do cavalo da Ciccone

A prevenção de eventuais danos no Palacete de Belas, que motivou a recusa a Madonna e o efeito de esta ter que ir cantar para outra freguesia, devia ser prática continuada nos serviços e responsáveis, todos eles, com redobrada atenção no que toca a uma Sintra Histórica, Património da Humanidade.

Não haja dúvidas que a notícia caseira da semana (mais “Navegante” mais barato, menos “Andante”) encerra em si mesma um enigma, pois num país habituado nas últimas décadas a que os seus responsáveis se rebolem de costas sempre que alguma estrela internacional do firmamento do show business (leia-se artístico, mas também político e empresarial), lhes pede para dar cócegas na barriguinha, quase sempre acenando-lhes com uma “nota preta”, eis que o edil de Sintra resolve dar uma valente nega à rainha da Pop.

O episódio conta-se em duas penadas:

Uma produtora solicitou autorização à Câmara Municipal de Sintra para a gravação de um videoclip no interior do palacete oitocentista da Quinta Nova da Assunção, em Belas, que é propriedade da autarquia, e viu a mesma ser recusada. Motivo: a presença de um cavalo no set poderia estragar irremediavelmente o chão e a estrutura do palacete.

Aplausos para o presidente da Câmara Municipal de Sintra, pela coragem do acto e pela irrevogabilidade da decisão, e porque ainda teve ocasião de reforçar a mesma com um claro “há coisas que o dinheiro não paga”, para que não restassem dúvidas.

Apupos para a “rainha”, que amuou (segundo o Correio da Manhã, terá escrito “já dei tanto a este país e quando peço um favor simples, de facto para mostrar Portugal ao mundo, a resposta que obtenho é negativa”), tendo ainda tentado mexer cordelinhos, em vão, ou, pelo menos, sem os efeitos desejados porque o assunto se tornara, entretanto, do conhecimento público.

À margem, mas não menos importante, nada se sabe sobre o que pensará nesta altura o cavalo em causa, que ficou sem conhecer o interior do palacete. Quiçá o mesmo que terá pensado um seu homólogo de certo vídeo picante de Illona Staller, rodado há já uns quantos anos. Muito menos se sabe de que cavalo se tratará, se de um dos já célebres onde a diva trotou pelas areias da Comporta, se de algum descendente directo do celebérrimo equídeo de Lady Godiva. Fosse isto um episódio do show de Ed Sullivan e já o saberíamos, por certo.

Seja como for, e brincadeiras à parte, a recusa de Basílio Horta é um marco histórico para a nação, um acto de pundonor que destoa no nosso quotidiano, em que tudo é aceite e ainda se agradece de boné estendido. Por isso, esta recusa merece ainda maior elogio público. E deseja-se que sirva de exemplo doravante, aos demais responsáveis, perante as mais variadas “estrelas” - lembremo-nos, por exemplo, do que se passou no Convento de Cristo, com as filmagens dirigidas por Terry Gilliam, ou, noutra dimensão, o que se deixa fazer a alguns empreendedores francófonos em matéria de reabilitação urbana na capital.

Voltando ao início do presente artigo, a estranheza a que alude o título tem que ver não com o facto concreto desta recusa em particular, mas, porque um sem-número de outros atentados ao património sintrense, e universal, classificado pela Unesco, não são objecto de igual, pronta e firme recusa.

É certo que Madonna não é uma construtora civil, nem uma promotora hoteleira, nem é dona de esplanadas no centro histórico, nem tem uma firma de “tuk-tuks”, muito menos possui uma empresa de podas e abates de árvores.

Mas a prevenção de eventuais danos no Palacete de Belas, que motivou a recusa a Madonna e o efeito de esta ter que ir cantar para outra freguesia, devia ser prática continuada nos serviços e responsáveis, todos eles, com redobrada atenção no que toca a uma Sintra Histórica, Património da Humanidade.

Tem que haver também pundonor em matérias que aparentemente são de somenos, como, por exemplo, no licenciamento de janelas e portas em alumínio e PVC, em detrimento da madeira. Nas tintas plásticas em relação aos revestimentos a pigmento natural. Na telha em canudo, sobre a mediocridade da “lusa”. Nos autocarros e “tuk-tuks” poluentes versus veículos eléctricos.

Assim como não pode a CMS estar a classificar árvores como de Interesse Municipal e depois permitir-se destruir essas árvores, autorizando podas brutais e ignorantes, ou a colocação de esplanadas que as agridem e sufocam (o que se passa em frente ao Café Paris e ao edifício do antigo Hockey de Sintra é escandaloso!), ou porque é sempre preciso mais um lugarzinho para o popó.

É um desconsolo absoluto o que acontece todos os anos em Sintra, com práticas de rolagem e agressões várias às suas árvores de grande porte, desde São Pedro até ao Lawrence’s.

É algo que a todos devia envergonhar, porque, além do mais, o património arbóreo da Vila (mais Colares e Banzão, e a Serra, obviamente) é tão ou mais valioso que o seu edificado, quem pense o contrário está profundamente enganado.

Igual pundonor devia presidir a todo e qualquer licenciamento urbanístico que ponha em causa a harmonia da Vila consolidada, a sua silhueta, as moradias e as quintas que a foram fazendo crescer a partir do centro histórico, o ritmo das suas janelas e das mansardas, a suavidade das cores, a patine, o musgo, as coberturas a duas e a quatro águas, os seus logradouros e os seus jardins verdejantes, os trilhos, os muros de pedra, as trepadeiras, etc., etc.

Mas o pundonor da CMS tem que ir mais longe.

Coisas como a monstruosa edificação na Gandarinha deviam ser banidas para todo o sempre. Mais, a CMS neste caso devia fazer o promotor abater todos os pisos do empreendimento que ultrapassam já o muro da envolvente. É um gravíssimo atentado a Sintra o efeito nefasto que este empreendimento já provoca nas vistas de quem vive e passa perto do local, mas também a quem está cá na vila e mira a encosta. E é um escândalo que o Comité Unesco, mais a mais com uma representação (?) permanente na Vila, faça de conta que não é nada com ela. Aliás, se fosse para levar a sério, o dito já teria ameaçado retirar o estatuto Unesco a um sítio em que se permite semelhante atentado.

Há que o ter também quanto ao estado deplorável e revoltante da histórica Quinta do Relógio – se há sítio em Sintra para se invocar a expropriação este é um deles. E ao faz-que-anda do Hotel Netto. Aos serviços da GNR que permanecem por trás do Palácio da Vila (já tiveram protocolo para dali saírem para as instalações dos bombeiros, mas está tudo na mesma…). Ao complexo da Misericórdia por “inaugurar” defronte ao mesmo palácio. Às “mil” edificações abandonadas Alameda Barão de Santos acima, mas também para os lados abandonados da Vigia, onde dizem que vai nascer hotel de cadeia internacional. E em São Pedro, coitado, quem o viu e quem o vê, a começar pela gigantesca Quinta de Santa Teresa (aquele desbravar de mato há uns tempos, para estacionamento - abriu uma vez?! -, trazia água no bico?) e o edifício em ruínas da União 1.º de Dezembro. E ao vário e valioso edificado ainda existente de Raul Lino e de Adães Bermudes, por exemplo, um pouco por todo o lado, eles que tanto contribuíram para a imagem de Sintra. Mas também ao edificado Art Déco e modernista, de Faria da Costa a Keil do Amaral, que ainda há algum. Proceda a CMS a intimações para obras coercivas e verá resultados práticos…

Porque essa Sintra não voltará a ser edificada. E quando desaparecer a Sintra que ainda temos, por abates licenciados ou, simplesmente, por estar toda plastificada, já nem valerá ao turista Disneyland, porque parques temáticos para “selfie” é coisa que não falta.

Que esta coisa do cavalo da rainha seja o ponto de viragem.

Quanto mais pundonor, maior a ovação.

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