A qualidade acima do certificado de origem

Quanto tempo durará a discussão em torno da chamada de Dyego Sousa à selecção? É difícil prever, mas se tiver de arriscar um timing, direi que o tema começará a esmorecer no exacto momento em que o avançado desatar a marcar golos. Porque é disso que se trata, no fundo: de rendimento. O jogador tem qualidade? Pode ser útil a Portugal? Cumpre as exigências impostas pelos regulamentos da FIFA? Pois bem, passemos à frente, então, ao debate que realmente importa.

A questão é sensível, reconheço, mas é-o por razões que nada têm a ver com o futebol. Para muitos, o desporto serve apenas de veículo de propagação de preconceitos a coberto de uma suposta identidade nacional que não é (nunca foi) geneticamente mensurável. Outros, talvez mais razoáveis, recorrem à teoria da “tradição” para sustentar que deve ser o cartão de cidadão a determinar a amostra das convocatórias. E, ao mesmo tempo, a maioria dos representantes deste universo lamenta há anos a ausência de avançados (goleadores, leia-se) capazes de servir as exigências de uma equipa que sempre clamou por níveis de finalização à altura dos seus índices de criação.

Por que razão decidiu Fernando Santos chamar Dyego Sousa e por que razão o lançou como titular no jogo com a Sérvia? Porque o jogador do Sp. Braga tem mostrado, ano após ano, jornada após jornada, que tem atributos interessantes que poderão complementar os recursos já ao dispor do seleccionador. É fortíssimo no jogo aéreo (esteve perto do golo nos poucos minutos que somou diante da Ucrânia), uma excelente referência para cruzamentos, um finalizador invulgar dentro da área e, ao mesmo tempo, tem aptidões que lhe permitem atacar a profundidade com competência.

Será, porventura, inútil estar a desfiar alguns dos exemplos de jogadores, de Pepe a Deco, que só criaram resistências em parte da opinião pública até à altura em que se tornaram imprescindíveis. Mas é bom que tenhamos em conta que a realidade portuguesa de hoje é a realidade de tantos outros países que lutam, em campo, com as mesmas armas precisamente pelos mesmos objectivos. O mundo mudou no último meio século e o desporto mudou com ele.

Se há um instrumento adequado para medir a pulsação do futebol com algum rigor, é um torneio com a magnitude e a diversidade de um Mundial. O do ano passado, que decorreu na Rússia, diz-nos algo sobre os efeitos das guerras, da imigração ou dos cruzamentos tantas vezes improváveis traduzidos pela ascendência familiar. Dos 736 jogadores que participaram na competição, 82 nasceram fora do país que representaram; 22 das 32 selecções participantes na fase final apresentaram pelo menos um futebolista nascido fora do respectivo território; um dos atletas, no caso Adam Januzaj, pôde dar-se ao luxo de escolher entre seis (sim, seis, não é engano) selecções possíveis — a saber, Bélgica, Kosovo, Sérvia, Turquia, Albânia e Inglaterra. Acabou por optar pela primeira.

Este é o estado da arte do futebol contemporâneo. Um relvado de dimensão planetária no qual Diego Costa pode marcar golos por Espanha, Guilherme pode defender as redes da Rússia e Ivan Rakitic (nascido e criado na Suíça) pode desenhar jogadas a régua e esquadro no meio-campo da Croácia. Este é o futebol da mobilidade, dentro e fora das quatro linhas, do talento sem fronteiras e das 1001 possibilidades.

Num Portugal em que o fundamentalismo clubístico tende a impossibilitar um pensamento estruturado e racional sobre o futebol, strictu sensu, haverá sempre focos de dispersão e luzes que encandeiam viradas para fora dos estádios. A apontarem para as certidões de nascimento ou à procura de impurezas no percurso de quem, por mérito próprio, se foi fazendo notar. Quanto mais cedo conseguirmos fazê-las incidir unicamente sobre os relvados, mais cedo passaremos a fazer justiça aos artistas.

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