O 25 de Abril, o Governo e as relações familiares

Não pode ter-se por salutar que subsista um sem número de laços familiares, de todo o género e feitio, entre titulares da função governativa, de mandatos parlamentares, de gabinetes ministeriais e de altos postos administrativos.

1. Há coisas que não compreendo, às quais não me resigno e com as quais não me conformo. E que são de tal maneira graves que justificam a invocação do melhor espírito da revolução de Abril. A pandemia de relações familiares que pauta a composição do Governo e a sua vizinhança político-partidária e administrativa é seguramente uma delas. A recorrência de relações familiares entre membros do governo, entre estes e dirigentes do PS, entre eles e membros de gabinetes governamentais consubstancia uma flagrante e temerária violação do princípio republicano. Não me conformo – insisto – com esta grave quebra da ética republicana. E conformo-me ainda menos com a aparente ligeireza e, às vezes, “compreensão” com que tal “anomalia” é tolerada por uma grande parte daqueles a quem cabe, em primeira mão, o escrutínio público. Essa tolerância do escrutínio e da crítica, que praticamente foi dominante até ao último fim-de-semana, resulta também de alguma “proximidade” entre a esfera dos escrutinadores e a esfera dos escrutinados.

Esta minha indignação não tem nada de novo (vide artigo de 23.10.2018). Sucede apenas que, depois de mais uma remodelação governamental, originada pelas candidaturas às eleições europeias, a situação de “à vontade político-institucional” foi reforçada e agravada, desafiando os princípios democrático e republicano. Note-se, esta nova vaga de nomeações de “proximidade familiar” ocorreu já depois de múltiplas críticas, reparos e avisos à navegação (apesar de a sua audição e repercussão ter tido pouco eco mediático). Não podia, como não pode, ficar sem uma denúncia veemente e um reparo adequado.

2. Foi para isto (ou também para isto) que fizemos e que nos fizeram o 25 de Abril! Temos de dizer não. Não mesmo. Há coisas que numa sociedade democrática – que se queira madura, sã e transparente – não são nem normais, nem triviais, nem menores, nem aceitáveis, nem desculpáveis.

3. Não pode ser havido como normal que, numa comunidade republicana, ministros do mesmo governo tenham laços familiares muito próximos. Não pode ser havido como normal que ministros sejam marido e mulher, sejam pai e filha, sejam irmãos. Pode ocorrer uma situação desse tipo, desde que intercedam razões que a justifiquem e tornem aceitável, mas não pode haver-se como algo normal. A aceitar-se um caso desses, ele deve ter-se por excepcional, sendo susceptível de justificação. A regra terá de ser a de que a subsistência desse tipo de relações, em princípio e por princípio, não é admissível numa forma de governo republicana e democrática. Naturalmente, a existência de uma situação excepcional, em que intercorre uma relação de sangue, de conjugalidade ou de afinidade, pode perfeitamente admitir-se, havendo em vista a história de cada um dos sujeitos, o seu currículo e decerto outras circunstâncias. Mas deve sempre tratar-se de uma excepção, só aceite com prudência, atendendo particularmente às qualificações e qualidades que justificam a(s) escolha(s). E, em caso algum, pela repetição de casos, deve converter-se num padrão ou numa regularidade. Justamente por isto, nunca ninguém se incomodou nem suscitou qualquer reserva à titularidade de pastas simultâneas por Ana Paula Vitorino e Eduardo Cabrita. Insisto e repito, a ocorrência de uma única situação, se configura uma excepção e tem explicação cabida, não levanta nenhum problema nem objecção.

O caso muda de figura se as situações de laço familiar próximo se multiplicam no patamar governamental e, pior ainda, se se comunicam do nível governativo (mais exposto e controlável) para os níveis de gabinete político e da administração pública (por definição, menos escrutináveis). Ou, igualmente negativo, se se cruzam e entrecruzam, como sucede na situação em análise, com o plano parlamentar e de direcção partidária. Não pode ter-se por salutar, atentos os pilares da república e da democracia, que subsista um sem número de laços familiares, de todo o género e feitio, entre titulares da função governativa, de mandatos parlamentares, de gabinetes ministeriais e de altos postos administrativos. Esta convergência de situações anómalas fere o núcleo essencial do princípio da imparcialidade e de tudo o que ele significa na gestão e na governação da coisa pública.

4. Passando do terreno dos princípios e dos valores republicanos para o domínio mais prático, há observações simples que se impõe sublinhar. Primeiro, é incompreensível que o primeiro-ministro não tenha sido nem seja sensível a estas razões democráticas e republicanas; ele que é o mais directo responsável pelos convites formulados e tem a visão sistémica de conjunto. Segundo, é também estranho que os próprios visados não se coíbam nem refreiem de aceitar nomeações e indicações para cargos e postos em que há óbvio e insofismável conflito de interesses com os seus íntimos ou próximos. Terceiro, chega a chocar a repetição ad nauseam de que “ninguém pode ser prejudicado por ser familiar de outrem”, quando o que seria expectável era que alguém lembrasse que, numa república, “ninguém pode ser beneficiado ou ter melhores oportunidades por ser familiar de outrem”. Quarto, é evidente que nos casos de cargos eleitos – directamente pelo povo (v.g., deputados) –, a tolerância para estas situações há-de ser mais ampla do que em simples indicações ou em eleições em grupo fechado ou restrito (v.g., grupo parlamentar). Quinto, ao contrário do que gente com grandes e sérias responsabilidades quis dizer, a situação vertente neste “Governo e arredores” nada tem que ver com várias situações de políticos com laços familiares (de todos os partidos) que souberam sempre usar de “auto-contenção” e “auto-restrição”. Sexto e último, na Europa não há nenhuma situação equivalente ou paralela. Há o caso dos gémeos Kaczinski (mas ambos foram sufragados) e dos irmãos Miliband (mas em competição entre si). Sétimo, fica um voto: que possa prevalecer o são e salutar espírito do 25 de Abril.

Sim. Solidariedade com Moçambique. Impressionante a mobilização de ONG’s, PR, Governo e oposição nesta causa dramática. Também solidária a grande cobertura dos media portugueses. 

Não. Theresa May. A semana passada revelou um desnorte que até aqui não a assolara. O ataque ao Parlamento foi um tiro no pé e agrava a incerteza nos dias que restam. 

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