E depois do adeus de Nuno Baltazar, o que fica por saber sobre a moda e o Portugal Fashion?

O designer deixou a iniciativa criticando a falta de transparência e visão da organização. Após 20 anos de investimento, quais serão os resultados para o país?

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Paulo Pimenta

O anúncio da saída de Nuno Baltazar eclipsou o fecho da última edição do Portugal Fashion (PF). O criador apresentou a última colecção e bateu com a porta, deixando duras críticas à organização numa publicação nas redes sociais. Queixava-se, por exemplo, da falta de transparência relativamente às acções internacionais e acusava a organização de não ter uma estratégia coerente.

O PF é uma iniciativa da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE), que organiza um evento de moda semestral, no Porto, e leva criadores às semanas da moda internacionais. Nos últimos meses, Nuno Baltazar – que começou a apresentar em nome próprio, em 2004 – vinha a preparar a sua primeira acção internacional, mas tal acabou por não acontecer. O criador aponta para uma “dualidade” na forma como o PF decide quem leva ao estrangeiro e diz que os critérios não são claros. “Até posso não ter motivo nenhum para estar chateado. Eu quero é ser esclarecido”, declara ao PÚBLICO. “Não tenho ferramentas para perceber se está ou não a ser bem feito, porque essas respostas não são dadas.”

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Nuno Baltazar apresentou no sábado a sua 30.ª (e última) colecção no Portugal Fashion Ugo Camera

Pelo caminho, avança com outras críticas. Primeiro, a falta de comunicação. Afirma, por exemplo, que durante o tempo em que esteve associado ao evento não houve qualquer acompanhamento da parte da direcção da evolução da sua marca e das estratégias que seguia. Ao mesmo tempo, sente que há alguma confusão naqueles que são os objectivos da organização. “Se o PF se propõe a fazer acções de promoção da moda portuguesa – nacionais e internacionais –, primeiro tem de definir o que é a moda portuguesa: é moda de autor, ou também engloba marcas comerciais e industriais? Sem desvalorizar uma ou outra, não podem ser todas metidas no mesmo pacote”, comenta. Acrescentando: “Eu defendo que a moda que deve ser promovida é a moda de autor.”

Mónica Neto, project leader do PF, afirma que, desde a sua génese, a organização teve como objectivo a “promoção da moda de autor, mas também estabelecer sinergias entre esta e a indústria têxtil e vestuário”. Justificando que estas ligações devem servir de apoio aos criadores. Algumas das marcas que participam no evento, confirma a project leader, “têm uma representação associada a uma comparticipação” – ou seja, pagam para estarem presentes. “O nosso ADN é a moda de autor e também a ligação à indústria”, reforça.

Retorno pouco claro

Assim, ao longo das ultimas duas décadas, a organização tem feito um investimento continuado de fundos de diferentes quadros de apoio comunitário, para acções como o próprio evento semestral e a promoção dos criadores com desfiles e showrooms a coincidir com as semanas da moda espalhadas pelo mundo.

De acordo com os dados do Compete 2020, a que o PÚBLICO teve acesso, foram até hoje atribuídos perto de 48 milhões de euros em incentivos, ao longo de 12 iniciativas e vários quadros de apoios comunitários, sendo que a primeira foi em 2000. 

Os retornos que esse investimento têm tido na moda de autor são pouco claros. Veja-se, por exemplo, os resultados dos “indicadores relevantes” do projecto apoiado pelo Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN) referente a 2014/15: são 26 os indicadores e a maioria refere-se a questões como o número de colecções ou coordenados apresentados no país e no estrangeiro; ou ao impacto dos órgãos de comunicação social a vários níveis – número de notícias ou de jornalistas que acompanham os criadores, por exemplo. Apenas um tem em conta retornos comerciais: a “variação do volume de vendas, na componente exportação, de uma amostra das dez maiores empresas/criadores com marca própria”. No entanto, esse valor não está disponível, dado que na altura da elaboração do relatório “muitos dos participantes nas acções” ainda não tinham encerrado o exercício de 2015, aponta o relatório.

Segundo a assessora para a comunicação do Compete 2020, o objectivo do investimento no PF é o impacto em geral na indústria e não especificamente nos criadores de moda de autor. A presença internacional “pretende transmitir o que de melhor se faz a nível nacional” e “o envolvimento dos vários designers não é o foco principal do projecto, mas um instrumento através do qual se dá a conhecer e se promove a capacidade criativa portuguesa”, afirma por email. Quanto à ligação entre jovens criadores e a indústria, essa tem como objectivo “preencher eventuais lacunas que empresas do sector têxtil, vestuário e calçado tenham ao nível do design”.

Ainda assim, não há forma de apurar até que ponto os resultados da indústria deste sector estão ligados directamente aos investimentos feito pelo PF. O PÚBLICO pediu uma entrevista ao presidente do Compete 2020, Jaime Andrez, que tem acompanhado todo o processo, mas não foi possível, “por falta de agenda”.

Mónica Neto garante que o PF faz “ciclicamente” a recolha dos dados referentes aos resultados comerciais dos criadores de moda de autor. Acrescenta que são feitas sobretudo quando há candidaturas a acções internacionais e que, quando se trata de criadores com um “percurso menos estabelecido”, é-lhes pedida uma estratégia. O PÚBLICO pediu para ter acesso a esses dados, mas não os recebeu até à data de publicação.

Quanto aos critérios da internacionalização, Mónica Neto afirma que as decisões são tomadas por uma equipa do PF com consultores internacionais, ligados às semanas da moda. “São desenhados ciclos, ao final dos quais normalmente fazemos uma rotação, a menos que haja um designer que esteja num percurso de ascendência e a que faça sentido dar continuidade”, explica.

Resultados de 20 anos de investimento

Com um historial de duas décadas de investimento na área da moda, é pertinente perguntar: Quem são os criadores nacionais que conseguiram impor-se no mercado de forma notável, dentro e fora do país? Mónica Neto começa por falar num sucesso de “comunicação, notoriedade, afirmação de marca”, para depois responder: “Do ponto de vista de resultados comerciais, a moda de autor em Portugal tem poucos casos que possam destacar-se. Vai tendo bons exemplos de designers que estão a conseguir sustentar a sua carreira e a sua actividade pessoal e profissional. Esperemos que, em termos de futuro, consigam escalar negócio e consigamos estar aqui a falar desses números.”

Do ponto de vista do criador Nuno Gama – que chegou participar no PF e hoje apresenta na ModaLisboa –, os resultados (ou a falta deles) estão à vista. “Há anos que andamos nisto e não vejo propriamente o reconhecimento da moda portuguesa no mundo. Deveríamos evoluir para um grau de exigência maior.” 

“É importante que haja apoio”, ressalva Nuno Gama. “Agora, a maneira como tem sido feito, é um abuso total, que tem a ver com a nossa desunião enquanto criadores portugueses.” E acrescenta que “não faz sentido, num país tão pequeno, ter duas semanas de moda”, referindo-se aos eventos do PF e da ModaLisboa (ML) – esta recebe apoio da autarquia lisboeta e de patrocinadores. 

Júlio Torcato, que apresenta no PF (e também já esteve na ML), defende que “começa a ser altura” de a moda portuguesa se afirmar. “Temos de nos questionar, no sentido de encontrar caminhos mais actuais”. O criador, dos mais antigos do actual panorama da moda, mantém uma visão optimista. Aponta, por exemplo, para a geração mais nova, “que vê as coisas de forma diferente da nossa”, e defende que a abordagem do PF tem sido nesse sentido.

A moda em guerra

Em Setembro do ano passado, o PF e a ML assinaram um protocolo, que, como explicava na altura Eduarda Abbondanza, presidente da iniciativa lisboeta, vinha “resolver um conflito inexplicável de muitos anos”. Adelino Costa Matos, que assumiu a presidência da ANJE em 2017, falava então de uma “vontade de olhar para um bem comum”.

Tal como Nuno Baltazar, muitos criadores que começaram na ModaLisboa acabaram por escolher apresentar apenas no Portugal Fashion. É o caso de Luís Buchinho, Katty Xiomara, Miguel Vieira e Alexandra Moura.

Durante anos, as duas organizações – ambas a trabalhar para objectivos aparentemente semelhantes – estiveram numa autêntica guerra aberta. Eduarda Abbondanza acusava o PF de ir buscar activos à ML, afirmando, em 2016 à Lusa, que enviou uma carta à organização alertando que a situação era “descabida em ética de trabalho”. O então director da ANJE, João Rafael Koehler, garantiu que não era pedida exclusividade aos criadores, afirmando que “foi havendo uma selecção natural por parte dos designers”.

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Eduarda Abbondanza, presidente da ModaLisboa, e Adelino Costa Matos, presidente da ANJE, durante a celebração do protocolo, que contou com a presença do primeiro-ministro, António Costa LUSA/FERNANDO VELUDO

Alguns anos antes, Nuno Gama tinha optado por ficar na ML. “Na altura, o PF pediu-me exclusividade. Se eu quisesse ter o apoio deles, teria de ficar exclusivamente com eles”, declara ao PÚBLICO. Escolheu não o fazer, por não concordar com a estratégia. “Para mim não fazia sentido estar misturado com aquela caldeirada de coisas”, explica, referindo-se à questão de diferentes vertentes da indústria estarem presentes no evento. Por exemplo, a imprensa ou os compradores que vêem as colecções dos criadores não são os mesmos que têm interesse na indústria, vestidos de noiva ou sapatos, argumenta. “Na realidade, a ANJE e o PF não têm interesse nenhum na moda portuguesa. Têm interesse é no dinheiro que isto gera”, comenta, referindo-se aos apoios comunitários.

União dos criadores portugueses

Nuno Gama defende a necessidade de união dos criadores. “Falamos com vozes muito isoladas e dispersas. De repente, temos aqui uma centena de interesses e opiniões”, concorda Júlio Torcato, referindo que deveria existir uma organização que representasse os designers. Foi aliás uma das questões levantadas por Nuno Baltazar, há uma semana, quando se despediu do PF, afirmando que tentou fundar uma organização, mas não teve apoio.

“Sinto que estamos todos preocupados em salvaguardar os nossos interesses, em vez de olhar para um ‘bem maior’”, comenta a criadora Susana Bettencourt, que no último PF apresentou uma colecção que alertava para o “sufoco” em que vive a indústria. “Toda a gente está à defesa. Estamos sempre com medo.”

Embora reconheça a liberdade de cada um expressar a sua “própria verdade”, a criadora questiona a necessidade de Nuno Baltazar levar estes temas à praça pública. “Não sei o que é que isto nos vai trazer. Vamos começar a ficar com medo uns dos outros”, acredita. Ao mesmo tempo aponta que é da responsabilidade de cada um trabalhar para afirmar-se no mercado. “Podemos não estar onde queremos estar, mas somos nós que temos de escolher a nossa estratégia.”

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