As ruas disseram a António Pires que o Holocausto não é algo distante

O encenador dirige no Teatro do Bairro, até 14 de Abril, O Terror e a Miséria no III Reich, texto escrito por Brecht durante a Alemanha nazi. Para lembrar que estes tempos não estão tão longe quanto aparentam.

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João Barbosa, Carolina Serrão e Jaime Baeta dr
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Inês Castel-Branco e Adriano Luz dr

A 13 de Julho de 1974, o Teatro da Cornucópia estreava, na Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, a sua terceira produção. O Terror e a Miséria no III Reich, de Bertolt Brecht, na tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, era o texto escolhido para a primeira proposta da companhia depois do 25 de Abril. “Porque este texto fala de um período histórico e de uma política do Estado com alguns pontos de contacto com o que se passou em Portugal”, argumentava então a Cornucópia.

A 20 de Março de 2019, António Pires estreou no Teatro do Bairro, em Lisboa, a sua encenação da mesma tradução, justificando a escolha com a actualidade que sente nas palavras de Brecht. “Parece que estou a ouvir as pessoas a dizer isto sobre o Trump e o Bolsonaro”, justifica ao PÚBLICO. “Isto”, que ouve nas bocas de outros acerca dos líderes políticos de Estados Unidos e Brasil, refere-se à desvalorização das suas declarações públicas – como se buscassem apenas um efeito e não devessem ser levadas a sério – e à convicção de que a sua passagem pelo poder será passageira – e, portanto, pouco lesiva.

“Foram esses ecos que encontro repetidos nas ruas que me levaram a decidir fazer o espectáculo”, continua. Ao contrário de alguns espectáculos mais oníricos ou coreográficos que, por vezes, procura nas suas encenações, desta vez António Pires quis abordar o “teatro enquanto algo que interfere na sociedade e que tem a capacidade de, com frequência, ver coisas onde mais ninguém vê, de espelhar a humanidade e de chamar a atenção para factos sociais”.

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Sandra Santos dr

E para que as palavras de Brecht não se percam nos vários quadros que compõem O Terror e a Miséria no III Reich, escritos pelo dramaturgo alemão na Dinamarca, entre 1935 e 1938, a partir de notícias de jornais da época, A Morte (trajada de palhaço) toma o palco nos minutos iniciais para recitar um poema que fala de “aquele que diz ter sido enviado por Deus, (…) agora pronto para a sua guerra”. “Que o povo seja poderoso, temido, obediente, decoroso, são os seus profundos anseios.”

Esse poema, entende António Pires, “explica muito a intenção da peça”. Ao mesmo tempo que mostra o quanto as pessoas que elevaram Hitler ao poder e ajudaram à sua manutenção no poder com as rédeas da Alemanha nas mãos – “pela inacção, pelo medo, por qualquer outra razão”, sugere o encenador –, essas pessoas podem, afinal, “estar ao nosso lado todos os dias ou podemos mesmo ser nós próprios”. É sobretudo essa proximidade com o mal que Pires quer reforçar, tentando combater a ideia de que o Holocausto “é uma coisa muito distante” e circunscrita “a uns personagens muito maus que estão lá longe”. O mais perverso dos males, parece dizer-nos em cada um dos 15 quadros, não é aquele que se apresenta com um rosto grotesco; mas sim aquele que tem uma face humana, que em nada anuncia a sua disponibilidade para pactuar e apoiar os gestos mais macabros e cruéis.

Após a parada militar com que inicia O Terror e a Miséria no III Reich, o primeiro quadro (A Comunidade Nacional) leva-nos para um diálogo entre dois oficiais das SS, numa noite de Janeiro de 1930, enquanto urinam. E comentam que chegou o tempo de “sacudir o homem alemão do seu longo sono, fazê-lo emergir do pântano dessa massa de seres inferiores”. Como tal, o bairro onde se encontram (e sobre o qual se aliviam) é sinónimo de uma “espelunca” em que “um patriota autêntico não se sujeita a viver”. Das casas dos remediados às mansões da altura burguesia, dos campos de concentração aos tribunais, Brecht vai espalhando por todo o lado o pânico das denúncias por antipatriotismo, a manipulação das sentenças judiciais, o abandono forçado do país por quem teve a má fortuna de nascer do lado errado das Leis de Nuremberga (que retiravam a nacionalidade alemã aos judeus), o inebriamento pelos pequenos poderes daqueles que, subitamente, se viram investidos de uma ascendência sobre os demais.

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Mário Sousa dr

A folha de sala da peça – em cena no Teatro do Bairro até 14 de Abril e com Adriano Luz, Carolina Serrão, Francisco Vista, Inês Castel-Branco ou Jaime Baeta no elenco –  inclui um texto do jornalista e analista político Daniel Oliveira. A par da historiadora Irene Flunser Pimentel, Oliveira foi uma das visitas de gente exterior ao teatro que o encenador convidou para assistir a ensaios e debater com a equipa. Mas a folha oferece também aos espectadores uma curta contextualização histórica que ajuda a encurtar a distância para estes momentos extirpados da Alemanha nazi. E que a tradução de Fiama Hasse, quase transformando as personagens em gente portuguesa, leva a pensar que estamos não diante de figuras decalcadas dos anos 1930 alemães, mas sim perante os nossos actuais vizinhos ou os donos da mercearia da esquina.

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