Da fluidez à deriva

Arriscamos a que a líquida fluidez, em que bolinamos, nos faça naufragar na pior das derivas: a deriva de nós mesmos.

Vivemos, diz-se, numa modernidade líquida, ou fluida, em que os valores são difusos e os referenciais heterogéneos; em que as trajectórias, sejam elas pessoais ou profissionais, se revelam diversas e permanentemente actualizáveis; em que as relações se afiguram descartáveis e superficiais.

Não se trata já do imperativo de flexibilidade, imposto por uma pós-modernidade assombrada com a sua própria mudança acelerada, porque essa flexibilidade, ainda que plástica, era sólida e palpável. Trata-se, isso sim, de assumir uma identidade líquida que, de tão efémera, parece escorrer-se-nos por entre os dedos.

Ser fluido tornou-se, aliás, numa espécie de distintivo hipster, ou, utilizando a expressão adequada na língua portuguesa (ainda que arriscando perder, com tal opção, todo o charme e cosmopolitismo), ser fluido é ser “modernaço”, ou o mesmo é dizer, ser fluido é ser urbano, culto, viajado, livre das sempre constrangedoras grilhetas dos estereótipos e das “construções sociais”.

E ser fluido é, sobretudo, ser economicamente desafogado, mas sempre alardeando esse desprendimento “material”, de que só o desafogo é capaz, uma vez que os pobres não podem dar-se ao luxo de ser desprendidos – provavelmente pela simples razão de não terem qualquer “material” de que se desprender.

Ser fluido corresponde, em última análise, e na tal lógica “modernaça”, à suprema liberdade individual: de pensar, de amar, de agir, de existir.

Ou então, e numa lógica mais pragmática, ser fluido traduzirá a única forma de nos desenvencilharmos, nestas sociedades do precário em que nos movimentamos: precário o emprego (e precário, até, o desemprego); precários os saberes e o conhecimento; precárias as famílias e os amores; precário o tempo.

Sobretudo, precário o tempo. Porque importa não esquecer que viver em sociedade, viver com os outros, exige tempo: de dar, de receber, de conhecer, de aprender e de apreender.

É o tempo que nos permite escolher o humanismo perante as ameaças do tecnicismo e da burocracia cega; que nos permite preferir o pensamento ao olhar relanceado; que nos permite distinguir entre o prestígio, que se constrói numa vida, e a celebridade vazia, que se fabrica num processo de produção tão instantâneo quanto a sua duração.

Assume-se, ou assumem por nós, que somos (e devemos ser) fluidos: nos gostos, nos comportamentos, no género...

Assume-se, ou assumem por nós, uma espécie de vontade de que circulemos por dentro de nós mesmos, ao sabor de uma corrente que, teoricamente, seria, apenas, a da nossa liberdade. Sucede, todavia, que a liberdade não tem correntes e, por isso, talvez não sejamos tão livres quanto os espíritos “modernaços” gostam de pensar.

Até porque o desejo de quebrar barreiras, implícito neste apelo à fluidez, pode colocar-nos ante a pior das barreiras: a da perda de sentido próprio, a da absoluta difusão identitária, a de poder ser tudo e, podendo ser tudo, acabarmos por ser nada.

Arriscamos, então, a que a líquida fluidez, em que bolinamos, nos faça naufragar na pior das derivas: a deriva de nós mesmos.

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