Moradores de bairros precários no Parlamento. “Não somos coitadinhos, queremos defender o que é nosso”

Partidos fizeram audição pública nesta sexta-feira a associações e entidades que trabalham em bairros sociais, bairros precários e áreas urbanas de génese ilegal, no âmbito da discussão da Lei de Bases da Habitação. PS, BE e PCP têm projectos-lei. Votação de diploma deve acontecer em Abril.

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O alcatrão do bairro da Quinta da Laje foi financiado pelos moradores. Câmara quer erradicar o bairro RG Rui Gaudencio - Publico

Mora num bairro, a Quinta da Lage, na Amadora, que é classificado como de génese ilegal, mas recusa aquela designação.“É um bairro prioritário mas não é ilegal. As pessoas foram apetrechando as suas casas da melhor maneira possível”, afirmou Edvaldo Lima, da associação de moradores. “E sentimo-nos quase traídos”, acrescentou.

É que naquele bairro, como em outros semelhantes, os proprietários pagam Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), mas “a câmara [da Amadora] nunca fez uma intervenção directa”, disse Edvaldo Lima aos deputados do PS, PSD, PCP e BE que estavam na audição pública promovida nesta sexta-feira pela Assembleia da República no âmbito da criação da Lei de Bases da Habitação. Foram ouvidas associações e entidades que trabalham em bairros sociais, bairros precários e áreas urbanas de génese ilegal (AUGI).

Emocionado, Edvaldo Lima afirmou a determinada altura: “Não somos coitadinhos, queremos defender o que é nosso.” A Câmara Municipal da Amadora (CMA) estabeleceu como prioridade a “erradicação” da Quinta da Lage e, segundo, o seu site o prazo de execução é até 2021.

Neste momento os deputados estão a debater três projectos de lei do PS, PCP e BE para a criação da Lei de Bases da Habitação, que baixaram à especialidade, sem votação, em Janeiro, e estão em processo de apreciação pelo grupo de trabalho da Habitação.

As intervenções durante todo o dia dos moradores, com queixas e reivindicações sobre os processos de realojamento ou de apoio à habitação social, foram várias. E muitas são comuns.

O que se passa na Quinta da Lage é um exemplo disso. Andreia Cardoso, dirigente associativa, sublinhou que há uma comunidade com laços socio-familiares, “há pessoas que estão lá há 60 anos”, algumas com mais de “90 anos que não irão aguentar um realojamento”. Questionou o facto de a CMA, que “identificou o terreno como urbano”, não requalificar aquele edificado em vez de realojar as famílias.

A dirigente associativa lembrou, aliás, que “a água, esgotos, electricidade foi tudo conseguido” pelos os moradores, que “lutaram e angariaram fundos” — a estrada está alcatroada com financiamento de quem lá viveu, afirmou. “Os meus filhos brincam em segurança na rua, nos bairros sociais onde nos querem realojar não há segurança, nem iluminação. Além de perder os nossos vizinhos, vamos perder o nosso bem-estar.” 

A deputada Helena Roseta, autora da primeira lei de bases da habitação entregue no ano passado, defendeu justamente uma política pública de solos para permitir encontrar soluções em casos como o da Quinta da Lage ou da Cova Mora. “Os moradores têm que sair porquê? Se me dissessem que ia cair uma arriba… Para fazer habitação privada? Essa agora”, comentou, criticando a autarquia. 

Também da Amadora, mas do bairro do Zambujal, Maria Felicidade Nunes, recordou que, quando ali chegou em 1985, dizia-se que era “terra de ninguém”. Foi feito um projecto de reabilitação, apoiado pelo Fundo Social Europeu, mas não passou da primeira fase. As casas estão degradadas, houve obras mas não se concluíram e há “famílias numerosas a morar em duas assoalhadas, pedem desdobramento e ele não é conseguido”.

Foi justamente a questão do financiamento que o mediador cigano Bruno Oliveira, do Bairro das Murtas, em Lisboa, questionou: para onde foram os milhões de fundos europeus e que medidas foram tomadas para acabar com as barracas de pano, principalmente no Ribatejo e no interior do país? “Porque há famílias ciganas que lá moravam há 40 anos, [foram desalojadas] e não lhes deram alternativas. Estamos a criar um ciclo de exclusão que não vai acabar, a habitação é a base da base.”

Já no final, Helena Roseta sublinhou que a lei “não vai resolver os problemas todos”, mas é importante definir que ninguém pode ser despejado sem alternativa. A futura lei deve dar “garantias de que se a autarquia e o estado não cumprirem a pessoa pode ir para tribunal”.

Em 2017 foram identificadas, na área metropolitana de Lisboa, 1713 AUGI — dessas, só 32% obtiveram o alvará de loteamento — e 285 não AUGI (só 40% teve alvará de loteamento).

A próxima audição será feita ao Governo, e os deputados esperam que a votação seja em Abril.

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