“O inferno é bastante parecido com a vida do dia-a-dia”

Robert Forster editou um novo álbum e chamou-lhe Inferno. Está habitado de sonhos românticos e acontecimentos banais que se tornam maiores quando o ex vocalista dos The Go-Betweens faz deles canções.

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Bleddyn Butcher

Inferno é, convenhamos, um título forte. As imagens que evoca são poderosas. É coisa assustadora, assim nos ensinou a religião, e pode ser coisa terrivelmente maravilhosa, assim o dizem incontáveis álbuns de black metal. Pode ser título indicativo de uma denúncia a que a obra aludirá, pode ser sinal de tumultos tenebrosos para os quais o autor foi arrastado ou se arrastou e dos quais fará a pormenorizada descrição ou a necessária catarse. Pode ser tudo isso. Ou pode ser um dia especialmente quente em Brisbane, Austrália, que deixa um homem a braços com vegetação ameaçadora a entrar-lhe porta dentro, que o deixa irritado quando se entrega à tarefa de cortar a relva do jardim, e a relva que tanto preza seca e tristonha, que o deixa a sufocar na cama, ao lado da mulher, e nem estarem despidos até à nudez os salva, que o calor é tão quente que não há outra palavra para descrever isto que se vive nesta diabólica tarde de Verão australiana: Inferno, diz Robert Forster.

É esse o título do novo álbum a solo do antigo vocalista dos Go Betweens —​ Inferno (summer in Brisbane) foi o single que o apresentou há alguns meses. Nele, o inferno não é lugar mitológico onde as almas sofrerão para toda a eternidade. Nele, o inferno não é sequer os outros. “O inferno”, revela então Robert Forster ao Ípsilon, “é bastante parecido com a vida do dia-a-dia”. Visto a partir do disco, diga-se a verdade, parece até um local bastante prazenteiro, recheado de sonhos românticos e de acontecimentos banais tornados maiores quando Forster faz deles canções. Repleto de memórias pueris e de sonhos de grandeza vertidos em melodia escorreita, e habitado por personagens a que um homem de 61 anos insufla densidade literária com a simplicidade no verso comum à melhor pop.

Inferno, o seu sétimo álbum a solo, tem o título que tem por ser “uma palavra poderosa” que, na cabeça do seu autor, encaixava com o som “grande, cheio e bonito” das canções. “É uma palavra forte, com muitas leituras”, resume. Ainda assim, dificilmente a imaginaríamos suscitada, e posteriormente vertida em capa de disco, por algo tão corriqueiro como uma tarde de sol abrasador. Fazer o mundano crescer até matéria de dignidade pop é, porém, nada mais que um dia normal de trabalho para Forster. “É isso a minha vida. Vivo numa casa normal nos subúrbios. Sou casado e tenho dois filhos. É isso que tenho à minha volta, é essa a minha vida. Parece-me bastante natural escrever sobre isso. E é isso que faço”. A questão, claro, é a forma como escreve sobre essa normalidade.

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Inferno, sétimo álbum a solo de Robert Forster, tem o título que tem por ser “uma palavra poderosa” que, na cabeça do autor, encaixava com o som “grande, cheio e bonito” das canções Bleddyn Butcher

Robert Forster está sentado à nossa frente no sofá de uma suite de hotel em Lisboa, cidade por onde passou há algumas semanas para algumas entrevistas promocionais — em Novembro, regressará a Portugal para dois concertos, dia 22 no Passos Manuel, no Porto, e dia 23 no Musicbox, em Lisboa. Alto e esguio, o australiano que fundou com o colega de faculdade Grant McLennan, no final dos anos 1970, uma das grandes bandas de culto da história da pop, os The Go-Betweens (parte Velvet Underground, parte Kinks, parte Roxy Music, tudo eles mesmos), sorve lentamente um café com leite, delicia-se com os morangos que lhe trouxeram de surpresa, ouve atento e interessado o que lhe perguntam e pergunta de volta. Quer principalmente saber sobre Lisboa, que já não visita há vários anos, explica, e que quer aproveitar para redescobrir da maneira que mais gosta, ou seja, caminhando pelas suas ruas até um destino final incerto, mas que envolve invariavelmente uma mesa café onde possa puxar do caderno e da caneta. É assim que compõe, cruzando o quotidiano com os discos, os livros, os filmes ou a pintura que o fascinam desde sempre. É assim e assim foi desde sempre.

Os grandes sonhos continuam 

“Os Go-Betweens não eram cinco tipos que começaram por tocar blues. Não é essa a história, não éramos como os Rolling Stones ou os Kinks”, conta. “O nosso início é bastante incomum. Éramos universitários e eu comecei a compor umas canções, mas o Grant não tocava nenhum instrumento — tive que ensinar-lhe a tocar baixo. Estávamos a estudar Beckett, estávamos a estudar Ionesco, estávamos a trabalhar Genet. Não podíamos pôr isso de parte. Não podíamos fingir que não sabíamos e cantar sobre conduzir na auto-estrada à procura de miúdas”. Não o fizeram. “Grant estava muito interessado em cinema e ambos estudávamos literatura. Pensámos ‘vamos juntar tudo e isso irá tornar-nos diferentes’. Foi o que aconteceu e, em relação a isso, quase nada mudou em mim”, diz. Inferno, o segundo álbum gravado de raiz após a morte do amigo e companheiro de banda, em 2006 (The Evangelist, de 2008, ainda foi feito sob a sua influência e ainda continha alguma música assinada por Grant McLennan), deixa-o claro.

Gravado em Berlim no estúdio do velho conhecido Victor Van Vugt, que foi também o produtor, despe a variedade de instrumentação presente em Songs to Play (2015) e, mesmo quando as guitarras eléctricas se fazem ouvir mais claramente no quase glam rock Inferno (Brisbane in Summer), soa a colecção de um cantautor a trabalhar o seu ofício à guitarra acústica, enquanto, não muito longe, um piano espera a sua vez. As notas quentes do baixo e a delicadeza da bateria, por sua vez, conduzem-nos ao ambiente reconfortante de Harvest, o clássico de Neil Young de 1972. “Tudo isso me conduz, na verdade ao meu início, ao que ouvia quando tinha 12 anos, aos Velvet Underground e aos Creedence [Clearwater Revival]”, contextualiza, pondo em sequência duas bandas que é raro vermos associadas na mesma frase. Para Forster, porém, “são bandas muito semelhantes, principalmente se considerarmos os Velvet tardios de Loaded”. Vê-as “acomodarem-se na mistura da mesma forma, com a bateria poderosa, mas como que atrás de tudo”, e acrescenta que os Byrds ou, indo ainda mais atrás, Buddy Holly, funcionavam da mesma maneira “na forma de conjugar guitarra eléctrica, baixo e voz”. Para Inferno, explica, “única coisa que queria diferente era ter mais piano e violino”. Há outra coisa a fazer a diferença. Mas, quanto a essa, ele nada poderia fazer — afinal, essa coisa é Robert Forster ele mesmo.

Inferno arranca com uma canção extraordinária, Crazy Jane on the day of Judgement. A letra é do poeta irlandês William Butler Yeats e a métrica que Forster lhe aplica é magistral na forma como casa as palavras com o tom grave do folk rock enublado a que o violino, tocado pela sua mulher, a alemã Karin Baümler, dará digna solenidade. “Love is all”, canta Forster, e é imensa essa totalidade. “Unsatisfied”, acrescenta no compasso seguinte, e é dramática essa limitação total. “That cannot take the whole”, prossegue Forster, “body and soul”, completa ele, e voltámos ao início, os versos continuarão a revelar-se e, à primeira canção do novo álbum, redescobrimos o músico que esgravata acordes com esforço contínuo e fascínio eternamente renovado — “ainda me deixa espantado que, com a minha técnica limitada, continue a escrever canções, porque julgava que, quando tivesse 40, já me teria esgotado”.

Redescobrimos em Inferno o músico que pensa as canções como narrativa de romance ou cena em ecrã, como espaços em que se imortalizam e engrandecem os episódios e as pessoas que vemos atravessarem a vida. Não por acaso, há um escritor em No fame — quer correr o mundo e escrever romances, quer fugir e descobrir o que está para além dos horizontes estreitos que conhece e isso será suficiente: I don’t need no fame, canta entre coros beatíficos em voz de esperança. Curiosamente, há um cineasta em Remain. Vemo-lo a caminhar entre o som aberto das guitarras, à Byrds, e um violino dançarino; vemo-lo a caminhar, batido mas esperançado: “I know what it’s like to be ignored, forgotten / But big city screeens, big city dreams/ Remain” — o cineasta é o próprio Robert Forster na década de 1990, quando tinha sido despedido da editora, vivia na penumbra e a sua carreira parecia ter terminado. Há mais. Há ainda a memória de Grant McLennan em I’m gonna tell it, há uma família que nasce e cresce à beira-mar em Life has turned a page ou essa bem-vinda verdade de auto-ajuda para acabar com as tretas da auto-ajuda — “It’s a new day, another day I’ve survived”, canta ele e é tão bom estarmos vivos, não é? E há, claro, o inferno que é Brisbane no Verão, exposto numa canção sobre um homem a cortar relva que é “a canção mais política” que Forster já compôs. A esse propósito, diz-me muito preocupado com as alterações climáticas e considera que Trump, Brexit e o egocentrismo das redes sociais são evidências de um “mundo insano” — “perante isso, poder escrever algo simples sobre o nascer do dia deixa-me bastante feliz”, sorri.

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Bleddyn Butcher)

Robert Forster, 61 anos, anda a ver o filho Louis, vocalista e guitarrista dos incrivelmente bons Goon Sax a seguir-lhe os passos: “Vejo algumas coisas minhas nele, mas mantenho-me à parte. Mantemos mesmo uma relação de família, tudo muito informal e caloroso, ele a mostrar-me riffs ou vídeos no YouTube”. Robert Forster, escritor de canções, a compor ao seu ritmo, sem pressões, ainda fascinado com a magia alquímica do processo: “Ainda há para mim algum mistério em tudo isto. Quando uma canção começa a formar-se tenho uma sensação de, ‘ah, então isto vai ser assim’. Quando chega uma letra que começa a encaixar-se, ‘hmmm, então a canção é sobre isto’”. Robert Forster, 61 anos, fundador dos The Go-Betweens, dono de uma digníssima carreira a solo, músico celebrado, a olhar em frente com entusiasmo. “O bom da minha carreira é que coisas imprevisíveis continuam a acontecer. Posso estar louco, posso estar enganado, mas sinto-me muito feliz com o que fiz nos últimos dez anos e só posso presumir que os próximos dez anos serão iguais”.

Quando foi apresentado ao jornalista que o entrevistou, exclamou durante o aperto de mão: “Pode perguntar-me o que quiser. Estou feliz”. Quando se despediu, pediu indicações sobre os caminhos tomar na cidade que se preparava para percorrer a pé. Ao final do dia, estaria numa esplanada a tomar notas. Talvez daqui a uns tempos exclame, algures em Brisbane, “ah, então a canção era sobre isto”.

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