O grande populista português

António Costa, este sim, é o grande populista português. Deixem Marcelo em paz.

Estou muito longe de ser a única pessoa que lamenta o deserto do pensamento que vigora na nossa aldeia. Resta-me o consolo de ir lendo na imprensa os mesmos que já leio há muito tempo, como Clara Ferreira Alves, Sérgio de Sousa Pinto, João Miguel Tavares, Henrique Raposo, Rui Ramos, José Manuel Fernandes, Maria João Avillez e alguns mais, a quem peço desculpa de não mencionar. A ordem dos nomes é arbitrária e a lista não é exaustiva, antes uma simples amostra. Sim, em Portugal, ele há ainda quem pense e não desista de pensar. Mas são pérolas raras.

Um tema candente que tem ultimamente preenchido muito papel de jornal é o de saber se Marcelo é ou não é um populista! A opinião prevalecente é de que o nosso Presidente não é um populista, e, mais importante para a Nação, é graças à sua popularidade que não sobra espaço para que surjam, em Portugal, os nefastos populismos de esquerda e de direita que assombram as noites de tantos infelizes governantes e políticos por essa Europa fora.

Os argumentos, as “provas” de que Marcelo não se enquadra nessa classificação maldita variam conforme os opinadores, como se pode verificar no espaço que lhes deu o PÚBLICO de 9 de Março: nada menos do que quatro académicos expuseram as suas razões, e de caminho, implícita ou explicitamente, deram-nos a sua definição de populismo.

Li com curiosidade. Estranhamente, nenhum mencionou o que está no cerne do autêntico populismo – que não se deve confundir com demagogia ou simples e legítima busca de popularidade, domínio em que o nosso Presidente é sem dúvida exímio. Marcelo, acima de tudo, adora e precisa de ser amado. Pode-se gostar ou não gostar do seu estilo presidencial, mas o seu desígnio é lícito e genuíno. Marcelo pretende agregar, juntar, unir os portugueses em redor da sua persona, tecendo laços de afecto que contrariem ou se sobreponham à desunião que a concorrência partidária naturalmente convoca, de envolta com a mais recente histeria identitária, que mina a coesão social. Nada há aqui de populismo: Marcelo não ilude, não mente, não pretende conquistar o povo com promessas impossíveis.

Uma ocasional pitada de demagogia não basta para fazer um político populista. Aliás, Marcelo raramente cede à tentação demagógica, a menos que tomemos as selfies por demagogia. Mas as selfies não são mais do que um dos muitos artigos que ele guarda no seu baú privativo dos afectos.

O que é característico e específico do populismo é, muito cruamente, a legitimação da mentira deliberada como instrumento de captação de votos e adeptos. Legitimação da mentira, sim, da mentira friamente premeditada, que não é o mesmo que dourar uma pílula ou fazer vagas promessas aliciantes. Disto, sempre houve. Não. O populismo radica na exploração da ambiguidade ou dualidade do signo linguístico, que se decompõe em significado e significante.

Creio que Nietzsche tenha sido o primeiro filósofo a colocar radicalmente em causa a inocência da língua e da linguagem, ao defender que os signos, e portanto a língua, são arbitrários e impostores, donde se segue que todo o conhecimento é ideológico. A partir daqui, e a partir da invenção da semiologia a que as teorias de Nietzsche e, posteriormente, de Saussure deram lugar, os filósofos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe desencantaram o conceito de “empty signifier” (significante vazio), cometendo ao povo o direito, a faculdade de preencher esse vazio significativo, determinando livremente, soberanamente, o “conteúdo”, o real significado do tal “significante vazio”. Dar-se-ia, por assim dizer, uma reapropriação da língua pelo povo, reapropriação que a expurgaria dos embustes e ratoeiras de que os desprevenidos são vítimas.

No caso grego, o mais clássico, esse significante vazio chamava-se “austeridade”: todos e cada um dos gregos, influenciados por ideólogos e políticos militantes, projectaram na palavra “austeridade” o conteúdo significativo que lhes apeteceu. Deste modo, a austeridade tornou-se a password para todas as frustrações, todos os ressentimentos, todos os desejos e todos os sonhos pessoais, colectivizados pela designação verbal única de “austeridade”, ou “anti-austeridade”.

E Tsipras fez o quê? Prometeu ao povo grego o que estava farto de saber que não lhe poderia dar: que acabaria com a austeridade, que obrigaria a UE a suspender o flagelo do povo grego, e que a bonança e a abundância estavam ao virar da esquina... Mentiu deliberadamente, com plena consciência de que estava a mentir, mas arrastou para o seu campo a maior parte da Grécia, que toda ela, de esquerda, de direita, do centro, do rés-do-chão ou do 10.º andar ansiava por alijar a carga de uma insuportável austeridade, arbitrária e sadicamente imposta por Bruxelas. Tsipras transformou-se assim num novo Messias: o salvador e o libertador.

Depois, o “conto de crianças” acabou como sabemos: Tsipras não salvou nem libertou ninguém, e aguentou com Bruxelas a impor ainda mais austeridade e a apertar ainda mais a vigilância exercida sobre o governo de Atenas... Mas Tsipras lá continua no poder, transformado num mero agente da UE e aplicando as doses de austeridade que esta lhe continuou a aplicar. E que o pessoal engole, porque sentiu a duríssima dureza da realidade quando, desfeito o sonho, esbarrou com a cabeça na parede de cimento. Mas Tsipras continua no poder! Pela sua parte, está onde queria estar: ganhou. Quanto aos gregos, que se amanhem.

Se há em Portugal alguém parecido com Alexis Tsipras, esse alguém é António Costa. Costa prometeu virar a página da austeridade e derramar a abundância. Sabendo que, mesmo sentado em cima da “saída limpa” que Passos lhe oferecera, uma tal promessa era da ordem do milagre, garantiu que os milagres existiam, dando como prova disso o “facto” de as vacas portuguesas voarem. Isto vale como metáfora para as muitas mentiras com que foi engodando o povo português ao longo desta legislatura, que se abeira do fim. E o que vemos nós de palpável? Vemos um país que está no osso, com as mais importantes infra-estruturas votadas ao desleixo e inoperantes, e os mais importantes serviços públicos, também subfinanciados, em processo de desmoronamento.

Porquê? Porque a austeridade nunca acabou, apenas se deslocou para outro campo de incidência: todos os euros arrebanhados por uma carga fiscal que roça o confisco serviram para cada português menos favorecido levar para casa mais cinco a dez euros por mês, o que não muda a vida de ninguém. Os anos da “geringonça” foram os anos em que o investimento público foi o mais baixo da história democrática de Portugal. Tal como o défice – só que este é pago com o dinheiro que deveria ir para o Serviço Nacional de Saúde, que por falta dele está de rastos, ou para as ferrovias, velhas e escangalhadas, ou para o património edificado, muito do qual se degrada ao abandono.

Sim, António Costa, este sim, é o grande populista português. Deixem Marcelo em paz.

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