O plástico é o vilão nesta peça que recolheu lixo para ir a cena

A companhia de teatro Krisálida estreou ontem Plastikus, um teatro com marionetas que versa sobre o plástico e os seus impactos no planeta. É dirigido às crianças mas o projecto inclui uma outra peça para adultos, a estrear em Junho.

Fotogaleria
Inês Fernandes
Fotogaleria
Inês Fernandes
Fotogaleria
Inês Fernandes

No início, o mar era o mar, a praia era a praia e Ondina uma criança que lá brincava. Mas os anos passaram e não levaram somente ao envelhecimento. Também criaram uma outra paisagem: sacos a boiar à tona da água e recipientes de formas e tamanhos vários a atafulhar as rochas no fundo do mar. Ou seriam as rochas a atrapalhar o plástico, de tão omnipresente? Estas imagens surgiram esta quinta-feira à noite no palco do Teatro Valadares, em Caminha, na estreia de Plastikus, um teatro com marionetas produzido pela companhia Krisálida.

Esses retratos de cenários que se vêem pelo mundo fora – a Grande Mancha de Lixo do Pacífico, que, segundo um estudo publicado em 2018, tem 17 vezes o tamanho de Portugal ou o areal de plástico na República Dominicana, também no ano passado, são exemplos – surgiram à medida que a vida de Ondina foi avançando. “É essencialmente a cronologia de uma pessoa que simboliza a humanidade, desde os anos 50, praticamente sem plástico, até à actualidade, coberta de plástico”, resume ao PÚBLICO a encenadora, Clara Ribeiro.

Com um elenco formado pelos três actores da Krisálida, companhia que trabalha em Caminha há cinco anos, Plastikus vai subir novamente ao palco do Valadares na sexta-feira e no sábado, tendo já outras sessões pelo concelho agendadas até 07 de Abril. Embora aberto a toda a gente na maioria dos espectáculos, dirige-se a um público específico: as mais de 600 crianças da pré-escola e do 1.º Ciclo do concelho do Alto Minho. “São da geração que vai sofrer mais com o comportamento humano até agora”, lamenta a directora artística da Mandrágora, companhia de teatro de marionetas criada em 2002, com sede em Espinho.

A intenção, sublinha a encenadora convidada pela Krisálida, é mostrar-lhes a forma como os objectos de plástico, somente utilitários ao início, passaram também a descartáveis, e lançar-lhes uma questão sobre o futuro da Terra: “será que ainda vamos a tempo”? Embora pessimista quanto ao futuro – “há países sensíveis aos problemas ambientais, mas há outros em que as pessoas não se preocupam pela falta de conhecimento, pelas guerras ou pela fome” -, Clara Ribeiro considera à mesma “importantíssimo” explorar este assunto através do teatro.

O interesse em trabalhar problemas das sociedades contemporâneas é partilhado pela directora artística da Krisálida. Depois de outros trabalhos junto das escolas, sobre a água e a floresta, Carla Magalhães decidiu elaborar um projecto sobre o problema do plástico, que recebeu a aprovação e um financiamento de 40.000 euros da DGArtes, em Novembro de 2018.

A proposta inclui não uma, mas duas peças de teatro: Plastikus, dirigido ao público infantil, com espectáculos agendados para o período entre 21 de Março e 07 de Abril, em todo o concelho, e uma outra, vocacionada para adultos, com estreia prevista para Junho e encenação de Graeme Pulleyn, autor inglês que reside em Portugal desde 1990 e cofundou o Teatro Regional da Serra do Montemuro, em Castro Daire. “Com o financiamento, quisemos ter a visão de dois encenadores de fora, mantendo o tema e o elenco”, explica Carla Magalhães, também actriz nas peças que vão ser apresentadas.

Antes das criações artísticas nascerem – a segunda peça surgirá em Maio, numa residência artística –, todos os profissionais envolvidos assistiram a um seminário sobre plástico no Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC). O conhecimento aí transmitido ajudou a moldar Plastikus, obra que também se debate com as consequências da ingestão do material pelos seres vivos. “Andamos a comer peixes que já andaram, eles próprios, a comer plástico”, alerta. “Isso está retratado no nome da peça. É uma junção de plastik e de us (nós, em inglês)”.

Espalhado pelo cenário, o plástico também surge nesta obra como uma personagem simbólica, vestida de um preto brilhante, em alusão ao material que lhe dá origem, o petróleo. Ele foi mostrando sucessivas novidades criadas do plástico, até Ondina perder o controlo sobre o seu uso, refere o actor que lhe dá corpo, Nuno José Lourenço. “No início, ele traz coisas úteis e divertidas, como uma boneca, por exemplo. Mas também pode ser o mau da fita se a gente o permitir que o seja”, observa o artista com cerca de 20 anos de carreira.

Um problema humano sob a arte da manipulação

Nesta encenação, há muito de humano transposto para as marionetas que encarnam as personagens; ora apareciam sós em palco, com o seu manipulador, ora vão contracenavam com actores de carne e osso. Para Nuno José Lourenço, actor com experiências passadas no teatro para crianças, o principal desafio foi transferir as expressões que queria comunicar para a marioneta. O processo, diz, exige um estudo cuidado dos movimentos do boneco e uma incursão mais profunda no imaginário. “Se eles forem extremamente artificiais são só bonecos. A ideia é criarmos a ilusão de têm vida própria”, explica.

No final da peça, Ondina era uma marioneta decorada de forma a parecer idosa, rodeada de plástico por todos os lados. Nessa fase, é interpretada por Carla Magalhães. Quando criança, é interpretada por Joana Vilar, a actriz mais jovem da Krisálida. Em algumas cenas, a personagem é até manipulada em simultâneo pelas duas actrizes. “Se estiver eu como Ondina criança, eu manipulo a cabeça e a Carla as pernas. Numa fase mais velha, é ao contrário”, explica. Para a actriz, as marionetas têm, junto das crianças, um potencial de sensibilização muito superior ao teatro clássico, face à prevalência de uma “linguagem de movimentação e de imagem”.

É precisamente a “narrativa sem palavra” que motiva Clara Ribeiro a dedicar o seu trabalho às marionetas. A sua presença em palco, afirma, é de “tal maneira forte”, que ofusca o manipulador, mesmo quando ele é visível, e origina “um outro universo” no seio do teatro. “É engraçado como o público aceita esta convenção de um objecto ganhar vida”, observa. Esta, aliás, não é a primeira experiência da Krisálida com marionetas - organiza o Maluga – Festival Luso-Galaico de Marionetas desde 2015.

Sugerir correcção
Comentar