Festival Jardins Efémeros não vai realizar-se este ano em Viseu

Falta de verbas leva organização a suspender o festival multidisciplinar que descentraliza e leva música, arte contemporânea e urbana nacional e internacional à cidade beirã. "É uma ideia de cidade que se esboroa.”

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Uma instalação de Miguel Januário no Largo de Santa Cristina, em Viseu, na edição de 2016 MIGUEL MANSO

O festival multidisciplinar Jardins Efémeros, que há uma década marca o calendário cultural de Viseu e do país com música, arte e intervenções no espaço público da cidade, não se vai realizar este ano. A falta de financiamento suficiente, nomeadamente municipal, está na origem da decisão da organização, que o comunicou na manhã desta quinta-feira. Os Jardins Efémeros, que já levaram artistas como Vhils ou o músico americano William Basinski e o alemão Nils Frahm a Viseu, contam regressar em 2020.

Numa nota enviada às redacções, a fundadora e directora do evento, Sandra Oliveira, explicava a sua “sentida tristeza” pela não-realização dos Jardins Efémeros em 2019 e escrevia que o projecto “carece de uma pausa para reflexão”. No mesmo comunicado conjunto, o vereador da Cultura da Câmara Municipal de Viseu, Jorge Sobrado, dizia lamentar também a suspensão da edição deste ano da “iniciativa marcante no contexto cultural local e nacional”, que ajuda a financiar desde a primeira edição.

Mas apesar de ter sido aprovado financiamento para esta edição no âmbito do programa municipal Viseu Cultura, para a organização este não é suficiente para a realização do festival que meses e anos depois de cada edição ainda deixa marcas no espaço público da cidade beirã, com intervenções de arte de rua, por exemplo. “Houve um desinvestimento paulatino ao longo dos anos da Câmara Municipal de Viseu”, disse ao PÚBLICO Sandra Oliveira. “Tentámos encontrar outras fontes de financiamento, mas não reunimos as condições financeiras para o realizar com a qualidade que esta cidade merece e exige”, lamenta Sandra Oliveira. 

“Tudo farei para continuar”, precisa Sandra Oliveira ao telefone, confessando a sua “dor profunda” perante esta suspensão e esperando que em 2020 os Jardins Efémeros possam regressar. Para a programadora, “é uma ideia de cidade que se esboroa”.

“São 10 anos de trabalho e tudo fizemos para conseguir fazer mais esta edição, para descentralizar a cultura contemporânea urbana em Portugal, para que ela possa chegar onde nunca vem – e no espaço público”, sublinha sobre a natureza aberta a todos do festival. “É o único evento de acesso gratuito para todos e com cerca de 100 mil visitantes a cada edição.”

A autarquia tem sido o principal financiador dos Jardins Efémeros, que conta também com verbas estatais e patrocinadores privados. As verbas atribuídas pela autarquia foram crescendo nas primeiras edições, dizem os números fornecidos pelo vereador da Cultura, de um financiamento municipal de 3108,91 euros em 2011 para um apoio intermunicipal de cerca de 36 mil euros em 2012, e depois 71 mil euros em 2013. À medida que o festival foi crescendo em ambição e visibilidade, em 2014 a autarquia investia 170 mil euros no festival, como dizia ao PÚBLICO o presidente da autarquia, Almeida Henriques; dados enviados esta quinta-feira pelo vereador da Cultura indicam sim que foram 152 mil euros. Em 2015 o valor baixou para 125 mil euros e o evento recorreu ao crowdfunding para angariar mais verbas; em 2017 a autarquia apoiou o evento com 123 mil euros; em 2018, esse valor baixou para os 100 mil euros. 

“À luz destes dados é possível perceber que o evento se realizou já com menos (muito menos, nalguns anos) e também mais financiamento municipal”, diz ao PÚBLICO, por email, o vereador Jorge Sobrado. O vereador diz ainda que actualmente e no futuro o limite máximo de financiamento cultural da autarquia é de 100 mil euros, a que acrescem 25 mil euros de apoios indirectos como apoio na comunicação, logística ou uso de equipamentos municipais de que os Jardins Efémeros já usufruíram em 2018. Frisando que o apoio da câmara “nunca foi posto em causa” — este ano a sua candidatura ao Viseu Cultura foi aprovada com os mesmos valores de 2018 e esperam que os Jardins Efémeros possam candidatar-se já este semestre a apoios para 2020 —, Jorge Sobrado diz: “Se alguém falhou no plano de financiamento do projecto não foi, portanto, o município, mas outros parceiros ou instituições”. 

Os Jardins Efémeros têm também contado com um apoio da Direcção-Geral das Artes (na edição de 2017 foram de 30 mil euros, por exemplo, no Programa de Apoio Directo para Projectos Pontuais no domínio da Programação), mas estes falharam para 2019 devido aos problemas com o novo modelo de apoios que em 2018 entrou em vigor. “Os tempos dos concursos não são os tempos deste projecto”, contextualiza Sandra Oliveira em declarações ao PÚBLICO.

Agora, o projecto da Pausa Possível — Associação Cultural e de Desenvolvimento e que teria neste ano a sua nona edição, entra ele próprio em pausa. “Da mesma sairá renovadora energia para a sua reorganização e relançamento com a qualidade que sempre exigimos”, lê-se no comunicado desta quinta-feira; “fazemos votos para que esta seja uma pausa breve”, diz por seu turno Jorge Sobrado na mesma nota, referindo esperar que “os poderes públicos nacionais criem condições para o seu desenvolvimento”. Na manhã desta quinta-feira, o presidente da autarquia, Almeida Henriques, adiantou à Lusa que estão a ponderar “assegurar alguma programação cultural” em Julho, quando tem decorrido o festival, “até para pessoas que marcaram as suas férias em Viseu nessa altura para usufruírem desse ambiente”.

Ao longo de oito edições, os Jardins Efémeros puseram a música mais exploratória, a arte contemporânea, o cinema, a arquitectura ou arte urbana nas ruas do centro histórico de Viseu, dando a conhecer inúmeros espaços inexplorados ao visitantes, convidando agentes artísticos portugueses e estrangeiros, a intervir em locais tão distintos quanto a Sé de Viseu ou o Museu Nacional Grão Vasco. Evan Parker±MaisMenos± (Miguel Januário) e Vhils (Alexandre Farto), Pop Dell’ Arte, Holly Herndon, Fennesz, Murcof, Lucrecia Dalt, Lubomyr Melnyk, Nástio Mosquito, Fernanda Fragateiro, Nuno Cera ou André Cepeda estão entre os muitos nomes que participaram nos últimos anos nos Jardins Efémeros.

Sandra Oliveira diz estar a receber o apoio de alguns desses convidados, como a italiana Caterina Barbieri, que numa mensagem assume que foi os Jardins foram uns dos primeiros festivais internacionais a acreditar no seu trabalho artístico, ou os músicos Abul Mogard e Marja de Sanctis, que consideram o evento “único e precioso para a comunidade local” e que “encoraja a visita de pessoas que podem não estar familiarizadas com a música e artes experimentais”. 

Durante a tarde desta quinta-feira, o artista Miguel Januário juntou a sua voz a esse apoio, classificando os Jardins Efémeros como um dos “eventos artísticos e culturais mais interessantes do país” que “apresentam Viseu ao país e ao mundo através da partilha de projectos e práticas artísticas alternativas, inesperadas, críticas, politizadas e surpreendentes”. Num post público na sua conta de Facebook, critica “o corte de verbas para a realização deste evento” e considera que esse corte “demonstra uma agenda política que não valoriza uma sociedade informada, consciente, capacitada e participativa. Contrariamente, investe em eventos ‘estratégicos’ e ‘dinâmicos’ como o Redbull Air Race, subversivamente calando vozes críticas da cidade, em benefício de um capital que promove a ignorância e a inércia. Os jardins são e serão o encorpar da democracia, a que nos dias de hoje nos escorrega das mãos… enquanto olhamos os aviões”.  com Sérgio C. Andrade

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