Uma cidade de Belarminos

Uma diferença assinalável entre Gabriel e alguns outros filmes portugueses dos últimos anos: um realismo tenso, credível, com que descreve o ambiente suburbano, a sua “guerra civil” permanente.

<i>Gabriel</i> evita os tiques do “realismo de televisão”, falso e pré-fabricado, que noutros casos se encontra em demasia
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Gabriel evita os tiques do “realismo de televisão”, falso e pré-fabricado, que noutros casos se encontra em demasia
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Gabriel é um filme surpreendente, dirigido por um realizador tarimbado na Irlanda e no Reino Unido, sobretudo em trabalho de televisão, e com muito pouco rasto no cinema português propriamente dito. Face ao realismo tenso, mas sobretudo credível, com que Gabriel, rodado na zona dos Olivais em Lisboa, descreve o ambiente suburbano, a sua “guerra civil” permanente (as questões raciais, as questões económicas), é fácil juntar dois mais dois e dizer que o filme importa a praxis da escola realista britânica, e fá-lo com a medida de sucesso suficiente para cavar uma diferença assinalável entre ele e alguns outros filmes portugueses dos últimos anos que também tentaram, num registo essencialmente narrativo, a aproximação à descrição da realidade social e geográfica do subúrbio ou de zonas menos favorecidas: aqui, acredita-se no que se vê e Gabriel evita os tiques do “realismo de televisão”, muito falso e pré-fabricado, que noutros casos se encontra em demasia — mesmo sem ser perfeito a esse nível, por exemplo no que toca ao uso da música (o “hip hop” a carregar a atmosfera faz sempre todo o sentido, mas quando se passa daí para a “música de filme” a coisa amolece), os estereótipos de encenação são mantidos ao largo.

Um elenco de desconhecidos (a começar pelo protagonista, Igor Regalla, na pele dum jovem candidato a pugilista recém-transplantado de Cabo Verde para os Olivais), mas que parece apostado em agarrar as personagens com unhas e dentes, numa espontaneidade em que as imperfeições e hesitações ajudam a espantar o artificialismo; uma estrutura narrativa com certo arrojo, a misturar tempos e a fazer a história avançar a partir de momentos cronologicamente distintos, extraindo daí algo de mais substancial do que apenas uma lógica de puzzle; e sobretudo uma forma de manter cada cena, e cada transição entre cenas, num registo tenso, onde parece haver sempre alguma coisa no lume (incluindo as cenas de boxe, os combates ou os treinos, filmadas com um pragmatismo que evita a tentação de querer ser o Raging Bull, numa modéstia artesanal em que, simplesmente, se acredita). E simplesmente acreditar-se é a virtude maior de Gabriel, mais rara do que parece: acreditar-se nestas personagens, nesta Lisboa de blocos de cimento, ginásios de boxe e discotecas manhosas, nesta Lisboa povoada por brancos e negros desafortunados, a cozerem as desilusões e os ressentimentos que os viram uns contra os outros. A Lisboa para além da “Lisboalândia” turística, onde se reencontra a tristeza sem disfarces que entretanto foi corrida do centro: duma personagem (o pai do protagonista, velho cabo-verdeano que veio para Lisboa tentar a sorte no boxe) diz-se o mesmo que se dizia de Belarmino, que podia ter sido um campeão. E também se acredita nessa tristeza, como se inesperadamente voltássemos a descobrir Lisboa como cidade de Belarminos.

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